quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

DUPLIPENSAR, Demetrio Magnoli (O GLOBO, 16/2/2012)

A blogueira Yoani Sánchez, os aeroportos privatizados, os policiais amotinados - por três vezes, sucessivamente, o PT exercitou a arte da duplicidade, desfazendo com uma mão o que a outra acabara de fazer. Há mais que oportunismo na dissociação rotinizada entre o princípio da realidade e o imperativo da ideologia. A lacuna abissal entre um e outro sugere que, aos 32 anos, o maior partido do País alcançou um estado de equilíbrio sustentado sobre o rochedo da mentira.

Peça número 1: O governo brasileiro concedeu visto de entrada a Yoani Sánchez, enviando um nítido sinal diplomático, mas Dilma Rousseff se negou a pronunciar em Havana umas poucas palavras cruciais sobre o direito de ir e vir, enquanto seus auxiliares reverenciavam o "direito" da ditadura castrista de controlar os movimentos dos cidadãos cubanos. A voz do PT emanou de fontes complementares, que pautaram as declarações presidenciais na ilha. Circundando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, diversos tratados internacionais e a Constituição brasileira, o assessor de política externa Marco Aurélio Garcia qualificou como um "problema de Yoani" a obtenção da autorização de viagem. Ecoando o pretexto oficial castrista, a ministra Maria do Rosário (dos Direitos Humanos!) declarou que Cuba não viola os direitos humanos, mas é vítima de uma violação histórica, representada pelo embargo norte-americano.

O alinhamento automático do PT à ditadura cubana revela extraordinária incapacidade de atualização doutrinária. A social-democracia europeia definiu sua relação com o princípio da liberdade política por meio de duas experiências históricas decisivas: a ruptura com os bolcheviques russos em 1917 e o confronto com a URSS de Stalin na hora do Pacto Germano-Soviético de 1939. O PT, contudo, não é um partido social-democrata. A sua inspiração tem raízes em outra experiência histórica, instilada no seu interior pelas correntes castristas que formam um dos três componentes originais do partido. Tal experiência é o "anti-imperialismo" da esquerda latino-americana, uma narrativa avessa ao princípio da liberdade política.

Peça número 2: Contrariando o renitente alarido petista de condenação da "privataria tucana", o governo leiloou três aeroportos para a iniciativa privada, mas, ato contínuo, o PT regurgitou as sentenças ortodoxas que compõem um estribilho estatista reproduzido à exaustão. Uma nota partidária anunciou a continuidade da "disputa ideológica sobre as privatizações", enquanto o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) se enredava na gramática da hipocrisia para formular distinções arcanas entre "concessões" e "privatizações".

A explicação corrente sobre essa dissonância radical entre palavras e atos aponta as motivações eleitorais de um partido que descobriu as vantagens utilitárias de demonizar adversários indisponíveis para defender a própria herança. Há, contudo, algo além disso, como insinua uma declaração do presidente petista Rui Falcão, que classificou os "adversários" do PSDB como "privatistas por convicção". O diagnóstico não faz justiça ao governo FHC, mas oferece pistas valiosas sobre a natureza de seu próprio partido.

O PT confusamente socialista das origens pouco se importava com o destino das empresas estatais, engrenagens do capitalismo nacional tardio erguido por Getúlio Vargas e aperfeiçoado por Ernesto Geisel. O partido só aderiu à ideia substituta do capitalismo de Estado após a queda do Muro de Berlim. No governo, aprendeu toda a lição: a rede de estatais configura um sistema de vasos comunicantes entre a elite política e a elite econômica, servindo ao interesse maior de perpetuação no poder e a uma miríade de interesses políticos e pecuniários menores. Os aeroportos foram privatizados para conjurar o espectro do fracasso da operação Copa do Mundo. Ao largo do território das convicções, sempre podem ser deflagradas novas privatizações: afinal, o partido antiprivatista tem como ícone José Dirceu, uma figura que prospera exercendo a função de intermediário entre o poder público e grandes grupos empresariais privados.

Peça número 3: O governo reprimiu o movimento dos PMs da Bahia e o PT condenou os atos criminosos de suas lideranças, mas não caracterizou a greve de militares como motim, deixando entreaberta a vereda para voltar a surfar na onda de episódios similares em Estados governados pela oposição. Os precedentes são conhecidos. Em 1992, quando o pefelista ACM governava a Bahia, o atual governador petista, Jacques Wagner, solidarizou-se com os PMs grevistas. Nove anos depois, quando a Bahia era governada pelo também pefelista César Borges, foi a vez do deputado Nelson Pelegrino, hoje candidato do PT à prefeitura de Salvador, proclamar seu apoio à greve dos PMs baianos. Durante a greve parcial de PMs paulistas, em 2008, no governo "inimigo" de José Serra, o PT formou uma comissão parlamentar de defesa do movimento.

A clamorosa duplicidade tem sua raiz profunda no papel desempenhado pelos sindicalistas do PT. A partidarização petista do movimento sindical moldou um corporativismo sui generis, que substitui os interesses da base sindical pelos do partido. No sindicalismo tradicional, tudo se deve subordinar às reivindicações de uma categoria. No sindicalismo petista, as reivindicações da base sindical devem funcionar como alavancas do projeto de poder do PT. Hoje, os PMs da Bahia são classificados como criminosos; amanhã, nas circunstâncias certas, PMs amotinados serão declarados trabalhadores comuns em busca de direitos legítimos.

O pensamento duplo não é um acidente no percurso do PT, mas, desde que o partido alcançou os palácios, sua alma política genuína. A tensão entre princípios opostos é real, mas não explosiva. Num país em que a oposição renunciou ao dever de discutir ideias, o partido governista tem assegurado o privilégio de rotinizar a mentira.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Dilma critica anistia que ela própria sancionou

 

‘Se você anistiar, vira um país sem regras’

Autor(es): Letícia Lins

O Globo - 10/02/2012

Dilma diz que há formas legítimas de reivindicar, mas que situações incompatíveis com a democracia são inaceitáveis

PARNAMIRIM (PE). A presidente Dilma Rousseff condenou ontem os rumos da greve deflagrada por policiais militares da Bahia, e advertiu que não se pode confundir reivindicações legítimas de uma democracia com o clima de desordem instaurado naquele estado. Ela ressaltou que conceder anistia para os líderes do movimento é levar o Brasil ao risco de se transformar em um "país sem regras".

Dilma fez os comentários durante visita a Parnamirim, em Pernambuco, onde passou a manhã da quinta-feira inspecionando a Transnordestina, ferrovia que vem sendo construída dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Ela conversou com a imprensa depois de chegar ao canteiro de obras no município sertanejo, a 513 quilômetros de Recife.

— O Brasil tem hoje uma visão de garantia da lei e da ordem muito moderna. Nós não consideramos que seja correto instaurar o pânico, o medo, criar situações que não são aquelas compatíveis com a democracia. Numa democracia, sempre tem que se considerar legítimas as reivindicações.
Mas há formas de reivindicar. E não considero que o aumento de homicídios nas ruas, a queima de ônibus, entrada em ônibus encapuzados seja uma forma correta de conduzir o movimento — advertiu.

E revelou seu espanto com cenas e gravações que viu no "Jornal Nacional" anteontem, com PMs grevistas incitando atos de vandalismo e articulando paralisações em outros estados.

— Fiquei estarrecida ontem (quarta-feira). Eu estava em Juazeiro (no Ceará), quando vi gravações divulgadas por uma televisão, no caso a TV Globo, sobre o fato de que há outros interesses envolvendo a paralisação.
Isso não é correto.

E avisou:

— O governo federal prontamente vai agir no suporte e em apoio aos governadores, sempre que eles peçam. Nós não podemos entrar em nenhum desses processos sem a solicitação dos governos. Ocorreu em todos os casos, no Maranhão, no Ceará, na Bahia. Teremos presença garantida do governo em todas essas questões.

Aguardo com muita expectativa o desenrolar de todos os acontecimentos, pois acho que estamos em um momento especial do Brasil. E é importante, mais uma vez, que a democracia, que as formas democráticas de solução desse tipo de conflito sejam aquelas que de fato vão estar em vigor, que sejam implementadas.

Dilma repudiou as solicitações de anistia para os envolvidos no movimento, já que greve de militares é proibida pela Constituição. E propôs medidas duras: — Não é possível esse tipo de prática. Vai chegar um momento em que vão anistiar antes de o processo grevista começar. E não concordo com isso. Por reivindicações, as pessoas não têm que ser presas nem condenadas. Agora, por atos ilícitos, crimes contra o patrimônio, contra as pessoas e contra a ordem pública, elas não podem ser anistiadas. Se você anistiar, aí vira um país sem regras.

A presidente ratificou: — Eu repito. Acho que você tem que respeitar democraticamente os movimentos, suas reivindicações. Mas não concordo, em alguns casos, de maneira alguma, com o processo de anistia, que parece sancionar o ferimento da legalidade. Não concordo e não vou concordar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Medo e silêncio tomam as ruas de Traipu

Por Odilon Rios, Ag. O Globo

Segunda cidade mais pobre do país sofre com desvios de verba cometidos por prefeito e vice

MACEIÓ. Com o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, Traipu já foi alvo de quatro operações da Polícia Federal, todas para prender o prefeito, a vice, a primeira-dama e secretários, acusados de corrupção e pistolagem. Pelo menos R$16 milhões foram desviados nos últimos quatro anos, boa parte em fraudes com a verba da merenda escolar. Desde 2009, 28 pessoas foram assassinadas, e a Polícia Civil jamais indicou os mandantes. Na segunda cidade mais pobre do Brasil, medo e silêncio tomam as ruas.

Jornalistas são proibidos de entrar na cidade, a não ser com escolta policial. Na terça-feira, 27, O GLOBO recebeu o aviso de policiais:

- Pode entrar na cidade, mas só se for um carro da polícia com vocês. Ninguém garante a vida de ninguém. Nem com escolta.

O prefeito Marcos Santos (PTB) e a primeira-dama, Juliana Kummer, escaparam do cerco da Operação Tabanga, da Polícia Federal, no último dia 20, fugindo pelo São Francisco em direção a uma das centenas de ilhas do rio.

Numa das casas do prefeito, a PF encontrou um impressionante sistema de videomonitoramento, com câmeras espalhadas por toda a cidade, além de rádiotransmissores. Ano passado, os policiais viram uma cena impressionante: uma corrente na porta da cidade e dois policiais "tomando conta" da entrada. Eles avisavam, por rádio, ao prefeito, quem entrava em Traipu, e só ficava quem tivesse "autorização" de Santos. A corrente foi arrancada e está na Justiça Federal - é uma das centenas de provas contra o prefeito.

De dez pessoas em Traipu, sete não sabem ler. Até o ano passado, não havia telefone celular. Era comum um carro de som passar alardeando o bordão: "O eterno prefeito Marcos Santos disse isso..." ou "o eterno prefeito Marcos Santos disse aquilo...". Os três provedores de internet foram liberados, e moradores criaram a comunidade "100% corrupção em Traipu", com uma foto de Santos de chapéu branco e as mãos algemadas.

Um deles contou como Santos movimentava o comércio da região:

- O povo ficava na porta da casa dele. Ganhava R$5, R$10. E fazia a feira com o dinheiro.

Na operação do dia 20, a PF desarticulou fraude de R$8,2 milhões com verbas do Fundeb e do Transporte Escolar. Incluindo outras ações - Carranca, Caetés, Mascotch - sobre o mau uso de verbas públicas, o prejuízo é de R$16 milhões.

Os alunos só viram carne de boi e de frango, pela primeira vez, este ano. Comiam bolacha com suco na hora do recreio. O dinheiro da merenda, segundo as investigações da PF, abastecia as despensas do prefeito, que pagava a feira de sua casa com os recursos do Fundeb. No Sindicato dos Trabalhadores da Educação (Sinteal), a presidente, Simone dos Santos, não quer falar. Diretores de escolas e professores fogem do assunto.

Nomeada há 20 dias para a Promotoria de Traipu, Karla Padilha iniciou o trabalho com uma visita surpresa à maternidade Nossa Senhora do Ó, cujo nome foi trocado para homenagear Maria Eulina dos Santos, mãe do prefeito. Constatou falta de médicos e armazenamento irregular de remédios. Pediu reforço ao Grupo Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gecoc), do MP:

- O volume de trabalho é imenso. O prefeito ficou oito anos à frente de Traipu. Como não podia mais se reeleger, colocou o sobrinho, virou secretário especial e continuou prefeito de fato, mas não de direito. Depois do sobrinho, candidatou-se e ganhou a eleição, da cadeia. Ano que vem tem eleições, e, se não houver condenação em segunda instância contra ele por causa da Lei da Ficha Limpa, Santos poderá se candidatar de novo.

A Justiça Federal determinou o afastamento do prefeito. No lugar dele, assumiu a vice, Juliana Machado, nora de Santos, presa em maio, com a primeira-dama de Traipu. Ambas são acusadas de desviar verba da merenda escolar para comprar uísque e uma boneca e pagar despesas pessoais.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

MARCIA HONORATO NÃO DEVE MORRER (DANIEL AÃRÃO REIS, O GLOBO, 19/09/2001

Nas comemorações realizadas em Nova York, em 11 de setembro passado, foi emocionante o momento em que se leram os nomes e os sobrenomes dos mortos no atentado às torres gêmeas do World Trade Center. Gravados na pedra, entoados em voz alta, era como se os presentes quisessem dizer: vocês desapareceram, mas estão conosco, em nossa memória, e nela e na pedra permanecerão enquanto os humanos tiverem capacidade de evocar.

Quando tem nome e sobrenome, a morte de uma pessoa adquire uma espécie de espessura. Na identificação, uma tentativa de lutar contra o pó e as cinzas, o anonimato, o esquecimento.

A bonita cerimônia fez-me recordar um livro de Yves Courrière, publicado há algumas décadas, bem escrito e documentado, sobre a guerra que os argelinos travaram pela independência, contra a pretensão colonialista da sofisticada e civilizada França. Referindo-se aos colonos franceses, mortos pela guerrilha argelina, o autor, sempre que possível, cuidava de identificá-los, com nome e sobrenome, proporcionando ao leitor uma sensação de mal-estar, como se conhecesse as pessoas que estavam morrendo. Uma experiência penosa, capaz de suscitar interesse e compaixão. No entanto, quando falava dos mortos argelinos - cerca de um milhão em 8 anos de guerra, muitos enterrados vivos, outros, queimados por bombas incendiárias -, talvez por desconhecimento, ou distração, ou simplesmente porque eram muito mais numerosos, os nomes eram quase sempre substituídos por números. Frios. Os números, frios. Em vez dos nomes, quentes. De sorte que a sensação que se tinha era que os argelinos passavam melhor e mais levemente para a eternidade do que os franceses. A chave da diferença era que uns tornavam-se anônimos, sem nome, nem sobrenome. Que os outros, os franceses, tinham.

De fato, os nomes e os sobrenomes podem salvar um morto do esquecimento. Mas podem igualmente salvar uma vida.

A vida, por exemplo, de uma pessoa que tem nome e sobrenome: Márcia Honorato. Felizmente, está viva. E esperamos que viva continue. Mas ela está ameaçada de morrer. Não de morte natural, mas assassinada.

Quem é Márcia Honorato?

Ela faz parte da Rede contra a Violência do Estado do Rio de Janeiro e também da Rede Nacional de Familiares das Vítimas do Estado.

Desde 2005, há longos seis anos, quando policiais militares mataram 29 pessoas entre Nova Iguaçu e Queimados, resolveu entrar numa luta que não poucos consideram insana: levar à Justiça os responsáveis pelos desmandos. Cerca de dois anos depois, em abril de 2007, recebeu em casa a visita de dois homens. Um deles esfregou uma arma de fogo em seu rosto e perguntou: "Você é um anjo, está querendo morrer?" Ela teve então que se esconder: largou casa, filhos, família e atividade profissional. Perambulou por aí até que, um pouco mais de um ano depois, a partir de junho de 2008, inscreveu-se no Programa Nacional de Proteção aos Direitos Humanos/PNPDH, uma espécie de clandestinidade oficial, se o paradoxo é permitido, pois, em tese, clandestinos são, ou deveriam ser, os que vivem à margem da Lei, acuados pelo Estado. Mas, no caso de Márcia, enquanto os agentes da Lei, que a ameaçaram de morte, permaneciam trafegando e traficando à luz do dia, em nome do Estado, ela caiu na clandestinidade, protegida por um programa oficial.

Mas a situação, em vez de melhorar, piorou. Não a encontrando mais, os caçadores ameaçaram sua família. Entraram na linha de mira os filhos, a sogra e o ex-marido, chamados impudicamente de "vítimas colaterais".

De sedentários, com domicílio conhecido, todos viraram nômades. Pulando de galho em galho, em moradias provisórias, precárias, arriscadas. Sem teto e sem segurança. Sob proteção, mas desprotegidos, à deriva.

Em julho deste ano, Márcia tentou falar pessoalmente com a ministra Maria do Rosário, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, durante as homenagens que se fizeram às vítimas da Chacina da Candelária. Não foi possível. Disseram-lhe que o seu caso estava "resolvido". Que não fosse inadequada. Se continuasse importunando, poderia acabar sozinha.

No último dia 12 de setembro, um dia depois das homenagens aos mortos de Nova York, ela foi novamente vítima de um duplo atentado: um automóvel - com as mesmas características - tentou atropelá-la duas vezes no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Seus ocupantes, ostensivamente, usavam capuzes. Entre uma e outra tentativa, apareceram outros PMs com atitudes intimidativas.

Márcia está com a vida em perigo. Faz lembrar os versos amargos da poeta Dinha, do Parque Bristol, da periferia de São Paulo: "De aqui, de dentro da guerra, qualquer tropeço é motivo". Márcia tropeçou em mãos assassinas. Mas continua firme, embora tenha a morte anunciada, prometida e jurada. Ainda segundo a Dinha: "A morte te chama, te atrai, te cobiça".

Ela tem um único trunfo: tem nome e sobrenome. Assim como as autoridades que têm responsabilidade por protegê-la: Dilma Rousseff, Maria do Rosário, Sergio Cabral, Eduardo Paes. Que detenham as mãos assassinas dos encapuzados, anônimos e sem-lei. É demasiado exigir-lhes que retirem Márcia da clandestinidade, recriando condições para que ela possa exercer efetivamente os direitos - que são seus - de cidadã?

Veremos daqui a alguns dias a reedição do assassinato da juíza Patrícia Acioli? Márcia Honorato não deve morrer, não pode morrer e não vai morrer. Sob pena de esta cidade, apesar da Copa e das Olimpíadas, virar mesmo, como denuncia a poeta da periferia, um cemitério geral de pessoas. Mesmo que estejam vivas.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Passem o saleiro, João Ubaldo Ribeiro

O Globo, 15 de maio de 2011

Quase todo mundo é intimidado por números e "verdades científicas". O sujeito apoia uma asnice em estatísticas que não ocorre a ninguém questionar e aquilo é aceito sem maiores indagações. É o que sucede, por exemplo, com as afirmações taxativas, que ouvimos pela televisão, segundo as quais a lei seca no trânsito já salvou (meu número é chutado, não lembro agora os deles, mas não vêm ao caso) 4.228 vidas este ano, ou qualquer coisa assim. Eu pergunto como é que se sabe isso? Procuram-se no domingo os vivos que circularam de carro no sábado e pergunta-se se eles deixaram de beber na noite precedente por causa da lei seca? E, se tivessem bebido, inevitavelmente morreriam? Como é que se sabe, e com tanta precisão, quantas mortes haveria, sem a lei seca? Já tentei achar a fórmula que eles aplicam, mas é difícil.

A mesma coisa acontece com as novidades publicadas nas páginas de ciência dos jornais. Todo dia alguém revela algo antes desconhecido e achamos mais um consolo, nesta vida sobre a qual sabemos tão pouco e na qual só temos certeza mesmo da morte. Uma verdade científica parece nos dar a sensação de que o mundo, afinal, pode ser parcialmente explicado - se não a Criação, pelo menos o seu funcionamento. E, se pode ser explicado, pode ser também parcialmente controlado, embora de vez em quando a natureza nos faça ver que não é bem assim.

Suspeito que, para a maioria dos leitores de jornais e revistas, os cientistas são uma espécie de comunidade de intelectos superiores, distinta do restante de humanidade e imune às fraquezas comuns. Do jeito que falam nas descobertas e afirmações científicas, é de se crer que algumas pessoas acham até que os cientistas moram num lugar à parte, talvez num grande complexo de habitações e laboratórios, onde imperam as verdades objetivas, imparciais e indiscutíveis.

Mas, como suas contrapartidas na "vida civil", os cientistas são de carne e osso, gostam de dinheiro e querem ter sucesso. Têm família para sustentar e expectativas a preencher. Um número enorme não faz pesquisa pura, mas aplicada. Não sei que porcentual deles (para começar, talvez não haja uma definição unanimemente aceita para a categoria) é assalariado de grandes empresas de alimentos industrializados, entidades que congregam grupos econômicos e laboratórios de medicamentos. Todos eles são sujeitos a pressões e estresse e alguns deles, novamente como no resto da população, não estão acima de distorcer, manipular ou interpretar tendenciosamente resultados, para atingir os objetivos de seus empregadores, para vender livros ou para ganhar fama.

E a verdade científica (sosseguem, que não vou entrar na bobajada sobre física quântica que atrai tanta gente, aqui é só o ramerrão mesmo) vive mudando, como todos testemunhamos, praticamente a cada dia. Assim de cabeça, todo mundo lembra o ovo, endeusado antigamente, demonizado contemporaneamente e agora redimido e até recomendado. E o tempo em que manteiga era veneno absoluto, devendo ser substituída pelas hoje abominadas margarinas. Ouvi, faz muito tempo, uma conversa sobre como o apogeu da exaltação da margarina se deu numa época em que havia grandes excedentes de produção de milho, ingrediente delas, e buscava-se um meio de desovar essa produção. Não tenho certeza de que a informação é exata, mas, se não for, muitas outras, parecidas e esquecidas, certamente serão.

De novo me arrisco a estar errado, mas vocês estão bem lembrados de todo o terrorismo feito por causa da gripe inicialmente chamada de suína? Ia ser um novo flagelo da humanidade e não se passava um dia sem informações alarmantes de alguma parte do mundo, relatos de mortes suspeitas, casos de contágio em massa e assim por diante. E a campanha de vacinação no Brasil, principalmente entre os idosos, não teve lá tanto sucesso, a convocação precisou ser muito reiterada. Claro, claro, são coisas de quem acredita em conspirações (eu às vezes acredito), mas o fato é que muita gente, inclusive cientistas, ganhou dinheiro com essa gripe. E nunca se vai de fato saber se quem lucrou com a gripe não colaborou com o clima de quase pânico instalado, ou pior.

Não se fala muito mais nisto, mas o exame da dedada, para dar um exemplo em outra área, envolve duas "verdades científicas" diametralmente opostas. A Organização Mundial de Saúde desaconselha aos homens (ou seja, acha prejudicial que se faça) o exame da dedada e declara inútil a medição do PSA. Os urologistas dizem que a verdade científica é deles e a OMS está errada. Como leigo, não sei em quem botar fé, mas um diabinho mordaz me sopra cá um comentário sobre a opinião dos urologistas. A 500 contos a dedada, malda ele, qualquer um sustenta que ela é indispensável.

Finalmente, aproveitem o domingo e encarem uma feijoada com todas as carnes e embutidos salgados. Há nova verdade científica sobre o sal, saída na semana passada. Um estudo publicado na revista da Associação Médica Americana concluiu que o sal não tem nada do vilão em que o transformaram. Ele agora não causa mais problemas de pressão arterial. Aliás, pelo contrário, pois o estudo afirma que os que comem pouco sal são os que correm maior risco de derrames e ataques cardíacos. Ou seja, os muitos entre vocês que já se acostumaram à comida sem graça e a nem chegar perto de um salgadinho sofreram em vão e ainda ficaram em maior risco do que os que ingerem sal a gosto. É bom não adiar a desforra muito tempo, porque daqui a pouco emite-se nova verdade sobre o assunto, as verdades duram cada vez menos. Mas devem vir outras boas por aí e já espero que a banha de porco seja reabilitada, vou ficar de olho no site do National Pork Producers Council.

sábado, 22 de janeiro de 2011

GUILHERME FIÚZA: A PRESIDENTE NA CHUVA (O Globo, 22 de janeiro de 2011)

O brasileiro é, antes de tudo, um crédulo. Deem-lhe um pretexto para ter fé em alguma coisa, e ele se lambuza de esperança. Não poderia ser diferente com a sucessão presidencial. Até os críticos de Luiz Inácio da Silva resolveram enxergar um novo tempo com a ascensão da "presidenta". É como se o país saltasse do último capítulo de Sílvio de Abreu para o primeiro de Gilberto Braga. Hora de acreditar em outro enredo.

E eis que a grande vedete desse tal novo tempo é o silêncio de Dilma Rousseff. Mesmo os que se opunham ao truque eleitoral do PT, em que Luiz Inácio tirava sua coelha da cartola e lhe dava corda para governar, estão vendo mudança em tudo. Se Lula falava demais, o silêncio de Dilma significa austeridade e trabalho. O Brasil acordou em 2011 decidido a acreditar na "especialista em gerência". Assim é, se lhe parece. Somos 190 milhões de Gilbertos Bragas.

Na vida real, porém, continua valendo o velho ditado (ou a melhor versão dele): de onde menos se espera é que não vem nada mesmo. Como se viu na campanha eleitoral, e antes dela, a especialista em gerência nem sempre conseguia completar um raciocínio. Tropeçava em números, se confundia com percentuais, torturava conceitos - incidentes não muito típicos de especialistas em gerência.

Para quem não esperava nada de Dilma Rousseff, ela correspondeu plenamente como presidente eleita. Sumiu de cena. Não deu uma palavra nem sobre a guerra nos morros do Rio. E, quando seu governo começou, a presidente continuou firme em seu exílio existencial. Nunca antes na história deste país um mandato presidencial começara assim, com cara de feriado.

Nenhuma medida importante, nenhuma reforma estrutural, nada além de tiradas como o "PAC da miséria", para entreter a imprensa. A julgar pelas manchetes, o futuro inaugurado por Dilma era um lugar onde o PT e o PMDB disputam o balcão estatal, enquanto a vida nacional faz figuração ao fundo. Aí vieram as chuvas.

A tragédia na Região Serrana do Rio veio atrapalhar o script dos novos tempos. A presidente não poderia mais ficar governando em off, regendo a partilha fisiológica do Estado detrás do seu silêncio mitológico. Dilma apareceu. Deu um pulo nas cidades devastadas e, antes de retornar ao exílio, falou aos brasileiros numa entrevista coletiva. Foram 40 minutos inesquecíveis.

A especialista em gerência rompeu seu silêncio para dizer que "o Rio vive um momento muito forte". O país já estava com saudades da precisão de suas mensagens. Mas ela não parou por aí. Declarou que a ocupação de áreas de risco no Brasil é regra, não exceção. Esta foi a afirmação destacada nas manchetes - para se ter uma ideia da densidade do discurso da presidente no meio da catástrofe.

Ao falar em moradias de risco, Dilma fez uma inflexão importante: "Agora vou defender o presidente Lula." De fato, em meio ao flagelo das enchentes, com suas centenas de mortos, feridos e desabrigados, era urgente defender o presidente Lula. A presidente passou então a elogiar as maravilhas do programa Minha Casa, Minha Vida, idealizado por seu padrinho, como uma espécie de pílula do dia seguinte para os desabamentos: "O Minha Casa, Minha Vida não investe em área de risco. Nós não incentivamos a população a construir em área de risco."

Uma informação providencial para uma situação de emergência. Se alguém confundiu esse discurso com comício populista, cumpre esclarecer ao mau entendedor: isso é pura sagacidade gerencial.

Dilma respondeu também sobre o problema da lentidão na liberação de verbas para as áreas devastadas. Explicou que nenhum gestor público está autorizado a não prestar contas de seus gastos. É realmente fundamental, numa hora dessas, a presidente da República informar que está proibido o desvio de verbas federais. Coisa de Primeiro Mundo.

Completando a ação implacável do novo governo, quatro ministros de Estado subiram ao palco da tragédia para falar ao país. Liderados pelo irrevogável Aloizio Mercadante, ministro de Ciência e Tecnologia, eles leram uma lista de boas intenções extraídas de um seminário meteorológico de um ano atrás. Segundo Mercadante, daqui a quatro anos um sistema nacional de prevenção de catástrofes estará pronto, irrevogavelmente. E, daqui a dez anos, uns 20% dos que morreram agora não morrerão mais. Um papo solto, sem stress, para tranquilizar o pessoal da serra.

Com tanta eficiência, essa junta liderada por Mercadante poderia dar uma força ao ministro da Educação na tragédia do Enem - onde o número de vítimas também não para de crescer. Se não for possível, ao menos os estudantes desabrigados e os sem-universidade poderão se orgulhar de ser governados por uma especialista em gerência.

Ao resto dos brasileiros, especialmente depois do pronunciamento histórico da presidente durante a enxurrada, o melhor é continuar louvando o seu silêncio.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

DEMÉTRIO MAGNOLI: 700 MORTES E 8 PASSAPORTES (O Globo, 20 de janeiro de 2011)

Marco Aurélio Garcia qualificou como assunto "de uma irrelevância absoluta" a concessão de passaportes diplomáticos aos filhos e netos de Lula. Ele, certamente, considera relevante a tragédia que ceifou mais de 700 vidas e destruiu cidades inteiras na Região Serrana do Rio de Janeiro. Os dois eventos, cujos impactos sobre a vida nacional são incomparáveis, estão relacionados, ainda que indiretamente. Eles, além disso, têm igual relevância, pois procedem da mesma fonte: a delinquência atávica de uma elite política hostil ao interesse público.

A lei é cristalina ao listar os critérios que regulam a concessão de passaportes diplomáticos. O ex-ministro Celso Amorim violou a lei, a pedido de Lula, quando presenteou a prole estendida do ex-presidente com o privilégio reservado aos representantes do Estado. O gesto ilegal não é amenizado, mas agravado pelo recurso cínico à invocação do "interesse nacional". O que o Ministério Público precisa para acusar o ex-ministro e o ex-presidente de abuso de autoridade?

Certos grupos ambientalistas propensos à mistificação culpam as mudanças climáticas globais pela catástrofe no Rio de Janeiro. Mas as precipitações torrenciais e os deslizamentos em encostas de morros fazem parte da dinâmica climática e geomorfológica normal das serras do Sudeste brasileiro. A intensidade das chuvas não é explicação suficiente das causas de uma das maiores tragédias humanas da história do País. Uma urbanização descontrolada, com ocupação extensiva de encostas de morros e várzeas inundáveis, moldou o cenário do desastre. Os mortos, as famílias devastadas, os desabrigados são o produto de décadas de escolhas políticas baseadas numa racionalidade avessa ao interesse público e, muitas vezes, às próprias leis. O que o Congresso Nacional precisa para instalar uma CPI dedicada à investigação do enredo completo da tragédia anunciada?

O patrimonialismo "é a vida privada incrustada na vida pública", segundo a definição de Octavio Paz. Na sua trajetória rumo ao poder, o lulismo conectou-se com um anseio profundo da sociedade brasileira ao fazer a denúncia sistemática de uma elite política consagrada ao intercâmbio de privilégios oriundos do controle do aparelho de Estado. Lula tocou um nervo exposto com seus "300 picaretas do Congresso", tirada irresponsável que se converteu em canção popular e sintetizou a bandeira de mudança com a qual alcançaria o Planalto. De lá para cá, ele e seu partido traíram noite e dia o compromisso original. A emissão dos passaportes diplomáticos equivale a uma abjuração escrita: o presidente que sai transforma a corrupção em virtude, zombando da "lei das gentes".

Não há mais de 700 mortos no Rio de Janeiro porque Lula concedeu à sua descendência o privilégio ilegal, mas porque a elite política que hoje Lula personifica zomba da "lei das gentes". Cada uma das áreas de risco ocupadas na Região Serrana fluminense tem a sua história singular. Alguns bairros surgiram por incúria das autoridades públicas. Outros se estabeleceram sob o amparo de acordos espúrios entre loteadores e políticos em cargos de mando. Prefeitos e vereadores formaram clientelas eleitorais estimulando a ocupação de vertentes e várzeas, ou apenas condescendendo com a violação das normas. A catástrofe foi tecida com os fios de uma política que combina populismo, patrimonialismo e clientelismo. Na Austrália, inundações muito mais amplas deixaram um saldo de mortes que se conta na casa de poucas dezenas, não de várias centenas.

Lula e os seus não se limitaram a absorver os usos e costumes da elite política estabelecida, mas foram bem mais longe, produzindo uma espécie de elogio público do patrimonialismo. O ex-presidente proclamou a inimputabilidade de José Sarney (o "homem incomum"), mudou a lei para beneficiar a empresa financiadora do negócio de seu filho e, na hora da despedida, comportou-se como um potentado, oferecendo passaportes diplomáticos aos familiares com a desenvoltura de um pai que distribui ovos de Páscoa. Como exigir de autoridades estaduais e municipais o respeito à lei, a adesão à norma, quando a República se transfigura na fazenda dos Lula da Silva?

"Sempre tem a hora de fazer avaliação. Tem que se fazer uma autocrítica, por que se permitiu fazer tudo isso. Mas agora é resgatar corpos e ajudar famílias desabrigadas. Não vamos perder tempo nesse momento." O governador Sérgio Cabral não é mais responsável pela tragédia que seus predecessores ou que os prefeitos, vereadores e lideranças locais da Região Serrana do Rio de Janeiro. Contudo, ao fabricar uma acusação preventiva contra os críticos, ameaçando crismá-los como inimigos da ajuda às vítimas, revela-se mais inteligente - e muito mais nocivo ao interesse público. A sua operação de linguagem tem o objetivo de suspender o debate político enquanto perdurar a emergência humanitária. É a receita certa para proteger a elite política que parasita a sociedade.

Uma tristeza avassaladora começou a se espalhar pelo Brasil inteiro com as primeiras imagens da tragédia. A memória dos mais de 700 mortos merece um monumento que não seja feito de pedra nem se preste à demagogia das inaugurações políticas. O monumento só pode ser um programa plurianual ambicioso de reconstrução das cidades devastadas e remodelação estrutural dos padrões de ocupação do solo na Região Serrana fluminense e em inúmeras outras cidades e corredores urbanos do País. Os recursos para tanto existem, mas serão queimados na pira ardente das obras colossais da Copa do Mundo e da Olimpíada.

As chuvas de janeiro provocaram um trauma nacional duradouro. O verão não terminou. As águas da destruição ainda podem apagar o fogo do desperdício sem freios e das negociatas fabulosas promovidas em nome do orgulho nacional. É a única homenagem verdadeira que os vivos podem prestar aos mortos.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

HERÓI SEM NENHUM CARÁTER–DEMÉTRIO MAGNOLI

Lula jamais protestou contra o monopólio da imprensa pelo governo cubano e nunca deu um passo à frente para pedir pelo direito à expressão dos dissidentes no Irã. Ele sempre ofereceu respaldo aos arautos da ideia de cerceamento da liberdade de imprensa no Brasil. Mas é incondicional quando se trata de Julian Assange: "Vamos protestar contra aqueles que censuraram o WikiLeaks. Vamos fazer manifestação, porque liberdade de imprensa não tem meia cara, liberdade de imprensa é total e absoluta."
Assange é um estranho herói. No Brasil, o chefe do WikiLeaks converteu-se em ícone da turba de militantes fanáticos do "controle social da mídia" e de blogueiros chapa-branca, que operam como porta-vozes informais de Franklin Martins, o ministro da Verdade Oficial. Até mesmo os governos de Cuba e da Venezuela ensaiaram incensá-lo, antes de emergirem mensagens que os constrangem. Por que os inimigos da imprensa independente adotaram Assange como um dos seus?
A resposta tem duas partes. A primeira: o WikiLeaks não é imprensa – e, num sentido crucial, representa o avesso do jornalismo.
O WikiLeaks publica – ou ameaça publicar, o que dá no mesmo – tudo que cai nas suas mãos. Assange pretende atingir aquilo que julga serem "poderes malignos". No caso de tais alvos, selecionados segundo critérios ideológicos pessoais, não reconhece nenhum direito à confidencialidade. Cinco grandes jornais (The Guardian, El País, The New York Times, Le Monde e Der Spiegel) emprestaram suas etiquetas e sua credibilidade à mais recente série de vazamentos. Nesse episódio, que é diferente dos documentos sobre a guerra no Afeganistão, os cinco veículos rompem um princípio venerável do jornalismo.
Agente original
A imprensa não publica tudo o que obtém. O jornalismo reconhece o direito à confidencialidade no intercâmbio normal de análises que circulam nas agências de Estado, nas instituições públicas e nas empresas.
A ruptura do princípio constitui exceção, regulada pelo critério do interesse público. Os "Papéis do Pentágono" só foram expostos, em 1971, porque evidenciavam que o governo americano ludibriava sistematicamente a opinião pública, ao fornecer informações falsas sobre o envolvimento militar na Indochina. A mentira, a violação da legalidade, a corrupção não estão cobertas pelo direito à confidencialidade.
Interesse público é um conceito irredutível à noção vulgar de curiosidade pública. Na imensa massa dos vazamentos mais recentes, não há novidades verdadeiras. De fato, não existem notícias – exceto, claro, o escândalo que é o próprio vazamento. A leitura de uma mensagem na qual um diplomata descreve traços do caráter de um estadista pode satisfazer a nossa curiosidade, mas não atende ao critério do interesse público. O jornalismo reconhece na confidencialidade um direito democrático – isto é, um interesse público. O WikiLeaks confunde o interesse público com a vontade de Assange porque não se enxerga como participante do jogo democrático. É apenas natural que tenha conquistado tantos admiradores entre os detratores da democracia.
Há, porém, algo mais que uma afinidade ideológica, de resto precária. A segunda parte da resposta: os inimigos da liberdade de imprensa torcem pelo esmagamento do WikiLeaks por uma ofensiva ilegal de Washington.
No Irã, na China ou em Cuba, um Assange sortudo passaria o resto de seus dias num cárcere. Nos EUA, não há leis que permitam condená-lo. As leis americanas sobre espionagem aplicam-se, talvez, ao soldado Bradley Manning, um técnico de informática, suposto agente original dos vazamentos. Não se aplicam ao veículo que decidiu publicá-los. A democracia é assim: na sua fragilidade aparente encontra-se a fonte de sua força.
Sorriso furtivo
O governo Obama estará traindo a democracia se sucumbir à tentação de perseguir Assange por meios ilegais. O WikiLeaks foi abandonado pelos parceiros que asseguravam suas operações na internet. Amazon, Visa, PayPal, Mastercard e American Express tomaram decisões empresariais legítimas ou cederam a pressões de Washington? A promotoria sueca solicita a extradição de Assange para responder a acusações de crimes sexuais. O sistema judiciário da Suécia age segundo as leis do país ou se rebaixa à condição de sucursal da vontade de Washington? Certo número de antiamericanos incorrigíveis asseguram que, nos dois casos, a segunda hipótese é verdadeira. Como de costume, eles não têm indícios materiais para sustentar a acusação. Se estiverem certos, um escândalo devastador, de largas implicações, deixará na sombra toda a coleção de insignificantes revelações do WikiLeaks.
A bandeira da liberdade nunca é desmoralizada pelos que a desprezam, mas apenas pelos que juraram respeitá-la. Assange não representa a liberdade de imprensa ou de expressão, mas unicamente uma heresia anárquica da pós-modernidade. Contudo, nenhuma democracia tem o direito de violar a lei para destruir tal heresia. A mesma ferramenta que hoje calaria uma figura sem princípios servirá, amanhã, para suprimir a liberdade de expor novos Guantánamos e Abu Ghraibs.
"Vamos fazer manifestação, porque liberdade de imprensa não tem meia cara, liberdade de imprensa é total e absoluta." Lula não teve essa ideia quando Hugo Chávez fechou a RCTV, nem quando os Castro negaram visto de viagem à blogueira Yoani Sánchez que lançaria seu livro no Brasil. Não a teve quando José Sarney usou suas conexões privilegiadas no Judiciário para intimidar Alcinéa Cavalcante, uma blogueira do Amapá, ou para obter uma ordem de censura contra O Estado de S. Paulo. Ele quase não disfarça o desejo de presenciar uma ofensiva ilegal dos EUA contra o WikiLeaks. Sob o seu ponto de vista, isso provaria que todos são iguais – e que os inimigos da liberdade de imprensa estão certos.
Alguém notou um sorriso furtivo, o tom de escárnio com que o presidente pronunciou as palavras "total e absoluta"?

JOÃO UBALDO RIBEIRO: VIVER CORRETAMENTE–26/12/2010

Não sei bem a que se pode atribuir a crescente moda de intervir na vida pessoal do cidadão brasileiro. Inclino-me a acreditar que isso se deve à falta do que fazer de um número cada vez maior de burocratas e tecnocratas. Todos eles detêm certezas sobre tudo o que julgam ser de sua alçada. Em matérias "técnicas", não há espaço para posições divergentes. Afinal, a técnica provém da ciência e a ciência fornece certezas. E essas certezas são tão poderosas que devem sobrepor-se até mesmo aos valores de indivíduos ou coletividades. O conceito de normalidade, tão enganoso não só científica como filosoficamente, parece para elas assente e inequívoco.

Claro que tais certezas, que amiúde se expressam em arrogância, autoritarismo e condescendência enfarada, não são certezas de coisa nenhuma, são apenas ignorância e estreiteza de horizontes em ação. O resultado é que nos vemos ameaçados a todo instante de sermos obrigados a nos comportar "normalmente" ou, pior ainda, corretamente. Volta e meia, alguma autoridade baixa regras sobre como devemos fazer compras em farmácia, que tipo de tomada nos convém usar ou que equipamento passou a ser compulsório nos automóveis. Com o nosso tradicional temperamento de rebanho ovino e de "tudo bem, contanto que não me incomode diretamente", vamos deixando que esse negócio se espalhe e tome conta de nossa vida.

Além do combate ao uso do tabaco e do álcool, creio que devemos esperar, a julgar por sinais aqui e ali, que nos ditem o que podemos comer. Em cantinas escolares, isso já é feito. Mas creio que os nossos mentores, protetores e tutores não considerarão seu trabalho concluído enquanto o pai que dê uma gulodice açucarada a seu filho não puder ser denunciado e enquadrado e perder o pátrio poder, se persistir em seu comportamento reprovável. Aliás, imagino que, com a vigência da lei da palmada, cedo chegará o dia em que pais e mães denunciados por palmadas desobedecerão a ordens judiciais e instruções de psiquiatras para serem corretos e normais e, portanto, o Estado os meterá na cadeia e lhes tomará os filhos, que terão seu futuro garantido, sob a guarda eficiente, carinhosa e científica de instituições modeladas na Funabem.

Assim como os fumantes oneram a saúde pública com as doenças causadas por seu feio vício, também o fazem os obesos, com seus problemas cardíacos, sua diabete, sua hipertensão. E não se pode esquecer que, caso essas pessoas de conduta e aparência condenáveis tenham filhos, estarão delinquindo ainda mais, pelo mau exemplo. Espero que em breve um dos mil braços do governo estabeleça padrões alimentares a que as famílias terão que obedecer, pelo bem de sua saúde e sob pena de suas compras de alimentos só poderem ser feitas sob a orientação de um técnico credenciado. Claro, ovo já foi um horror e hoje é permitido e até encorajado. Margarina já foi aclamada como o substituto sadio da manteiga e hoje é execrada. São as verdades científicas.

Ao contrário do que chegou a divulgar-se, os defensores da censura a Monteiro Lobato não foram derrotados nem alteraram suas posições. O livro pode ser lido, mas sob a supervisão de um professor com qualificações específicas. Ou seja, em última análise, um técnico em leitura literária, um guia. Diretamente, sem intermediários, o livro não pode ser lido. Acredita-se que existe a maneira certa de ler, entender e apreciar um determinado livro. As maneiras que não se encaixem no padrão correto são, por consequência, errôneas e inadmissíveis. Daí se passará, imagino eu, à exigência de que os livros, não somente na escolas, mas entre o público em geral, só possam circular depois de lidos pelos técnicos, que escreveriam uma espécie de bula ou modo de usar, para que os leitores apreendessem corretamente a leitura. Claro, não é censura, é apenas a aplicação da verdade científica ou objetiva.

Aliás, falando em livros há outras novidades, ainda no terreno da cultura. O plano é mudar a lei dos direitos autorais. Os proponentes das mudanças dizem que não estão de fato querendo mudar nada, porque todas as suas ideias estariam contidas em dispositivos legais já vigentes. Pergunta-se, nesse caso, por que é preciso fazer uma nova lei. Não sei bem, mas sei, pelo que já me foi contado, que a produção de cópias de livros ou textos sem pagar direitos autorais será permitida, contanto que para fins educativos. Ou seja, qualquer coisa, ainda mais no mangue educacional que é o Brasil. O sujeito escreve um livro que é adotado em classe e esse livro pode ter praticamente uma edição à parte, pois há máquinas que possibilitam isso, copiando um livro inteiro e cuspindo do outro lado volumes já encadernados, com capa e tudo. O autor não vê um centavo, embora os produtores da edição pirata se remunerem pelo seu trabalho de "difusão" e, principalmente, os fabricantes das máquinas ganhem.

Interessante isso. Acredita-se que um estudioso dedique anos de pesquisa e trabalho duro a produzir algo pelo qual não será pago, a não ser pela distinção de ser adotado nas escolas. Por que os funcionários do governo que lidam com cultura não abdicam de seus salários, já que a verdadeira cultura não pode ter preocupações materiais e o artista pode viver de brisa? Trabalhar para a cultura é isso, é ser filósofo e poeta aos olhos do grande público. Morrendo bêbado, tuberculoso e na sarjeta é ainda melhor, compõe o quadro romântico.

A interferência do Estado na elaboração, venda e circulação de livros e, acima de tudo, a tutela de seu uso, sua interpretação e sua avaliação não é mais nem autoritarismo, é totalitarismo fascistoide mesmo, é controle do pensamento. Mas moda é moda e, como ninguém reage, vão nos empurrando essas e outras goela abaixo, até o dia ideal em que não pensaremos mais, porque os pensadores certos já terão pensado tudo por nós.

domingo, 7 de novembro de 2010

POR QUE NÃO REESCREVEM TUDO, JOÃO UBALDO RIBEIRO, O GLOBO–7/11/2010

De uns tempos para cá, não sei se me engano, começaram a proliferar normas destinadas a controlar nossa conduta individual. Falei em algumas aqui e cheguei a aventar a hipótese de que uma agência governamental, ou qualquer outra das muitas autoridades a que vivemos subordinados sem saber, venha a estabelecer normas para o uso do papel higiênico e garantir sua observação através da instalação de câmeras nos banheiros de uso público. Nos banheiros domésticos, imagino que seriam suficientes umas visitas incertas de inspetores com gazuas, para tentar flagrar os que se asseassem ilegalmente. Não se trata somente de passatempo para burocratas entediados e sem mais o que fazer. Trata-se da convicção, que parece grassar truculentamente em toda parte, de que existe algo "certo", cientificamente certo e, portanto, todos devem comportar-se dentro do certo.

Se nas ciências físicas esse negócio de "certo" já é olhado com um pé atrás, nas ciências humanas, que nunca puderam aspirar ao nível de objetividade daquelas, a existência do "certo" é muito discutível, envolve necessariamente valores, valores que permeiam toda ação do homem e não são território da ciência e da objetividade.

Agora leio aqui nos jornais que a compulsão pelo certo acaba de atingir novo limite. Desta vez, por um parecer do Conselho Nacional de Educação, que opinou que o livro "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, deve ser proibido nas escolas públicas, por se tratar de obra racista. Sei que, entre vocês, há leitores de Monteiro Lobato que acharam que não entenderam o que acabaram de ler. Mas é isso mesmo: não pode "Caçadas de Pedrinho", porque é racista. Ou, por outra, pode, mas somente "quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil".

Eu não vou nem falar nos milhões de brasileiros de todas as idades e todas as gerações que viveram no mundo mágico criado por um dos maiores escritores universais, um gênio naquilo que fez melhor, motivo de orgulho para todos nós, Monteiro Lobato. Nem vou dedicar tempo a entender como é que foi que todos esses milhões, lendo, despreparados, livros racistas, não vieram mais tarde a abrigar preconceitos e ideias nocivas, instilados solertemente na consciência indefesa de crianças. Monteiro Lobato, com toda a certeza, tem tantos defensores quanto leitores, não precisa de mais uma defesa.

E que diabo é "compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil". A compreensão "certa"? Qual é a compreensão certa de um fenômeno que gera até brigas ferozes entre seus estudiosos e participantes? Estará correta a visão que vê no racismo um fenômeno causado exatamente pela diferença de raças? Terá mais razão o que vê na escravidão um fenômeno basicamente econômico e só secundariamente racial? Quem resolveu isso? Qual a posição oficial do governo? O professor que orientar a leitura de "Caçadas de Pedrinho" terá que saber.

Deus ajude as pobres crianças, torturadas com o que era antigamente somente um livro que as transportava para a fantasia, a aventura e o encantamento inocentes. Agora, ao que parece, o correto é a leitura tutelada, orientada.

Antigamente, a literatura infantil era liberdade, escape, território autônomo em que a imaginação do jovem, ainda não embotada pela experiência, o levava a uma felicidade mais tarde irreproduzível. Agora talvez se diga "você gostou disso, por aquilo; e não gostou disso, porque não é para gostar, está errado". A boa literatura dá lições como consequência, não como objetivo. Deve-se ensinar a ler por prazer, de maneira desarmada e aberta - e não há como desconfiar dos clássicos como Lobato, os clássicos são clássicos porque são clássicos. A literatura, como a vida, não é certinha. A ficção até que arruma os acontecimentos, lhes empresta enredos e sentidos que na vida real não têm. Mas, como a vida, a ficção mostra contradições, reflete dilemas, exibe defeitos, ilumina a existência humana. Quem entra num romance deve entrar sozinho, a viagem é individual e intransmissível.

E até mesmo essa conversa de necessidade de contextualizar o livro é bem discutível. No meu tempo de menino, ninguém precisou contextualizar os livros de Tarzan para aceitar a África dele, assim como não se contextualizava Robin Hood, D'Artagnan, Jorge Amado, Érico Veríssimo ou quem lá fosse que aparecesse num romance, a contextualização era automática, vinha do bom texto.

Finalmente, em que medida os defeitos não são subjetivos, ou seja, não estão apenas na mente e na percepção de quem os aponta? Existirá um racismômetro? E, mais ainda, não haverá outras áreas sensíveis? Acho que a adoção de mais controles é decorrência lógica e questão de justiça. Temos por exemplo a antropologia ultrapassada de Euclides da Cunha, o tal que falou no "mestiço neurastênico do litoral". É tão presente nele  essa visão antropológica superada (além de ofensiva a grupos raciais; eu mesmo sou mestiço neurastênico do litoral e as mulheres sempre me discriminaram) que o melhor seria mandar um antropólogo correto e moderno reescrever "Os Sertões', para quê o velho? Esperemos também alegações de violência contra mulheres (Barba-Azul), machismo (Bolinha), ódio a uma espécie em extinção (o lobo de Chapeuzinho Vermelho), exploração de deficientes verticais (os anões de Branca de Neve), apologia da bruxaria (a Bela Adormecida) e assim por diante. Olhando para trás, chego a ter um arrepio, em ver como escapamos por pouco de termos as personalidades deformadas pela leitura irresponsável dos clássicos, esses repositórios de traições, assassinatos, incestos, preconceitos, guerras, adultérios e tudo mais que o planejamento científico logo eliminará. Melhor por enquanto ficar longe deles e aguardar instruções das autoridades.