ALFREDO SIRKIS - O Globo, 21 de setembro de 2009
A fuga do bandido Polegar colocado em “regime aberto” e a provável libertação, em breve, do último dos assassinos presos do jornalista Tim Lopes, o traficante Elias Maluco, também pela “progressão de pena”, são intoleráveis. Aquele crime, horrendo — a vítima foi esquartejada e queimada — foi cometido em 2002. Sete anos depois, todos os outros facínoras envolvidos já estão na rua. Quando matou Tim Lopes, Elias Maluco já se beneficiara da “progressão de pena” de uma condenação anterior. Polegar também.
Não há país que trate criminosos de alta periculosidade com tamanha leniência. Há uma filosofia sociojurídica por trás disso: o criminoso é visto primordialmente como “vítima” de uma sociedade injusta. Esta, por culpa — e masoquismo! — deve garantir-lhe todas as chances para, supostamente, se recuperar, em detrimento da própria proteção. A prisão não existe para proteger a sociedade dos violentos mas para “recuperá-los”, embora raramente o faça.
Segue lógica análoga a decisão do STF que dá aos condenados condições de liberdade até o longínquo advento do seu julgamento em última instância e sentença transitada em julgado. Na prática, isso abriu imenso campo para que facínoras perigosos com advogados competentes desfrutem de virtual impunidade. Soma-se à leniência a baixa capacidade de apuração de crimes da polícia de “bico” que temos: um investigador da Polícia Civil trabalha em escala de serviço de 24 horas por 72 dedicadas a outra ocupação. A autoria de mais de 90% dos homicídios nunca é descoberta no Estado do Rio. Para os bandidos que têm o incomum azar de serem presos e condenados perfila-se no horizonte a “progressão de pena”...
Esse padrão contrasta com o tratamento dado aos criminosos violentos em outros paises. Não me refiro apenas ao chamado Primeiro Mundo, mas também a países latino-americanos. Os EUA, a França, o Reino Unido, o Chile, a Colômbia, que tratam o crime violento com severidade e penas longas, seriam menos democráticos? Será o Brasil uma ilha de democracia e dos direitos individuais cercada por fascismo por todos os lados? Ou, ao contrário, há algo de profundamente anormal na forma absurdamente condescendente com que criminosos violentos aqui são tratados? Pior: na vida real essa liberalidade escandalosa em nada assegura uma defesa eficaz dos direitos humanos. Apenas caracteriza o país do faz de conta: uma teoria jurídica escandinava para um dia a dia iraquiano. A outra face (nada oculta) dessa moeda é a prática disseminada da pena de morte, via execuções sumárias, o inferno sub-humano das prisões — para os detentos fora dos “esquemões”, naturalmente —, a persistência da tortura, o despreparo e a violência policiais. Já me acostumei ao olhar de espanto de muitos de meus amigos estrangeiros, jornalistas, gestores locais, intelectuais — em geral “de esquerda” — quando lhes revelo que no Brasil um assassino perigoso e reincidente pode livrar-se da prisão em três ou quatro anos, ou que um galalau de 17 anos, “de menor”, que já matou cinco pessoas, não pode ser penalmente responsabilizado. Ou quando lhes menciono que no Rio os bandidos exercem controle territorial com armas de guerra e policiais arriscam a vida pelo mísero salário de US$ 450 (quatrocentos e cinquenta dólares) trabalhando um dia sim, dois ou três dias, não. Nos transformamos numa sociedade institucionalmente indefesa e acovardada.