terça-feira, 28 de dezembro de 2010

HERÓI SEM NENHUM CARÁTER–DEMÉTRIO MAGNOLI

Lula jamais protestou contra o monopólio da imprensa pelo governo cubano e nunca deu um passo à frente para pedir pelo direito à expressão dos dissidentes no Irã. Ele sempre ofereceu respaldo aos arautos da ideia de cerceamento da liberdade de imprensa no Brasil. Mas é incondicional quando se trata de Julian Assange: "Vamos protestar contra aqueles que censuraram o WikiLeaks. Vamos fazer manifestação, porque liberdade de imprensa não tem meia cara, liberdade de imprensa é total e absoluta."
Assange é um estranho herói. No Brasil, o chefe do WikiLeaks converteu-se em ícone da turba de militantes fanáticos do "controle social da mídia" e de blogueiros chapa-branca, que operam como porta-vozes informais de Franklin Martins, o ministro da Verdade Oficial. Até mesmo os governos de Cuba e da Venezuela ensaiaram incensá-lo, antes de emergirem mensagens que os constrangem. Por que os inimigos da imprensa independente adotaram Assange como um dos seus?
A resposta tem duas partes. A primeira: o WikiLeaks não é imprensa – e, num sentido crucial, representa o avesso do jornalismo.
O WikiLeaks publica – ou ameaça publicar, o que dá no mesmo – tudo que cai nas suas mãos. Assange pretende atingir aquilo que julga serem "poderes malignos". No caso de tais alvos, selecionados segundo critérios ideológicos pessoais, não reconhece nenhum direito à confidencialidade. Cinco grandes jornais (The Guardian, El País, The New York Times, Le Monde e Der Spiegel) emprestaram suas etiquetas e sua credibilidade à mais recente série de vazamentos. Nesse episódio, que é diferente dos documentos sobre a guerra no Afeganistão, os cinco veículos rompem um princípio venerável do jornalismo.
Agente original
A imprensa não publica tudo o que obtém. O jornalismo reconhece o direito à confidencialidade no intercâmbio normal de análises que circulam nas agências de Estado, nas instituições públicas e nas empresas.
A ruptura do princípio constitui exceção, regulada pelo critério do interesse público. Os "Papéis do Pentágono" só foram expostos, em 1971, porque evidenciavam que o governo americano ludibriava sistematicamente a opinião pública, ao fornecer informações falsas sobre o envolvimento militar na Indochina. A mentira, a violação da legalidade, a corrupção não estão cobertas pelo direito à confidencialidade.
Interesse público é um conceito irredutível à noção vulgar de curiosidade pública. Na imensa massa dos vazamentos mais recentes, não há novidades verdadeiras. De fato, não existem notícias – exceto, claro, o escândalo que é o próprio vazamento. A leitura de uma mensagem na qual um diplomata descreve traços do caráter de um estadista pode satisfazer a nossa curiosidade, mas não atende ao critério do interesse público. O jornalismo reconhece na confidencialidade um direito democrático – isto é, um interesse público. O WikiLeaks confunde o interesse público com a vontade de Assange porque não se enxerga como participante do jogo democrático. É apenas natural que tenha conquistado tantos admiradores entre os detratores da democracia.
Há, porém, algo mais que uma afinidade ideológica, de resto precária. A segunda parte da resposta: os inimigos da liberdade de imprensa torcem pelo esmagamento do WikiLeaks por uma ofensiva ilegal de Washington.
No Irã, na China ou em Cuba, um Assange sortudo passaria o resto de seus dias num cárcere. Nos EUA, não há leis que permitam condená-lo. As leis americanas sobre espionagem aplicam-se, talvez, ao soldado Bradley Manning, um técnico de informática, suposto agente original dos vazamentos. Não se aplicam ao veículo que decidiu publicá-los. A democracia é assim: na sua fragilidade aparente encontra-se a fonte de sua força.
Sorriso furtivo
O governo Obama estará traindo a democracia se sucumbir à tentação de perseguir Assange por meios ilegais. O WikiLeaks foi abandonado pelos parceiros que asseguravam suas operações na internet. Amazon, Visa, PayPal, Mastercard e American Express tomaram decisões empresariais legítimas ou cederam a pressões de Washington? A promotoria sueca solicita a extradição de Assange para responder a acusações de crimes sexuais. O sistema judiciário da Suécia age segundo as leis do país ou se rebaixa à condição de sucursal da vontade de Washington? Certo número de antiamericanos incorrigíveis asseguram que, nos dois casos, a segunda hipótese é verdadeira. Como de costume, eles não têm indícios materiais para sustentar a acusação. Se estiverem certos, um escândalo devastador, de largas implicações, deixará na sombra toda a coleção de insignificantes revelações do WikiLeaks.
A bandeira da liberdade nunca é desmoralizada pelos que a desprezam, mas apenas pelos que juraram respeitá-la. Assange não representa a liberdade de imprensa ou de expressão, mas unicamente uma heresia anárquica da pós-modernidade. Contudo, nenhuma democracia tem o direito de violar a lei para destruir tal heresia. A mesma ferramenta que hoje calaria uma figura sem princípios servirá, amanhã, para suprimir a liberdade de expor novos Guantánamos e Abu Ghraibs.
"Vamos fazer manifestação, porque liberdade de imprensa não tem meia cara, liberdade de imprensa é total e absoluta." Lula não teve essa ideia quando Hugo Chávez fechou a RCTV, nem quando os Castro negaram visto de viagem à blogueira Yoani Sánchez que lançaria seu livro no Brasil. Não a teve quando José Sarney usou suas conexões privilegiadas no Judiciário para intimidar Alcinéa Cavalcante, uma blogueira do Amapá, ou para obter uma ordem de censura contra O Estado de S. Paulo. Ele quase não disfarça o desejo de presenciar uma ofensiva ilegal dos EUA contra o WikiLeaks. Sob o seu ponto de vista, isso provaria que todos são iguais – e que os inimigos da liberdade de imprensa estão certos.
Alguém notou um sorriso furtivo, o tom de escárnio com que o presidente pronunciou as palavras "total e absoluta"?

JOÃO UBALDO RIBEIRO: VIVER CORRETAMENTE–26/12/2010

Não sei bem a que se pode atribuir a crescente moda de intervir na vida pessoal do cidadão brasileiro. Inclino-me a acreditar que isso se deve à falta do que fazer de um número cada vez maior de burocratas e tecnocratas. Todos eles detêm certezas sobre tudo o que julgam ser de sua alçada. Em matérias "técnicas", não há espaço para posições divergentes. Afinal, a técnica provém da ciência e a ciência fornece certezas. E essas certezas são tão poderosas que devem sobrepor-se até mesmo aos valores de indivíduos ou coletividades. O conceito de normalidade, tão enganoso não só científica como filosoficamente, parece para elas assente e inequívoco.

Claro que tais certezas, que amiúde se expressam em arrogância, autoritarismo e condescendência enfarada, não são certezas de coisa nenhuma, são apenas ignorância e estreiteza de horizontes em ação. O resultado é que nos vemos ameaçados a todo instante de sermos obrigados a nos comportar "normalmente" ou, pior ainda, corretamente. Volta e meia, alguma autoridade baixa regras sobre como devemos fazer compras em farmácia, que tipo de tomada nos convém usar ou que equipamento passou a ser compulsório nos automóveis. Com o nosso tradicional temperamento de rebanho ovino e de "tudo bem, contanto que não me incomode diretamente", vamos deixando que esse negócio se espalhe e tome conta de nossa vida.

Além do combate ao uso do tabaco e do álcool, creio que devemos esperar, a julgar por sinais aqui e ali, que nos ditem o que podemos comer. Em cantinas escolares, isso já é feito. Mas creio que os nossos mentores, protetores e tutores não considerarão seu trabalho concluído enquanto o pai que dê uma gulodice açucarada a seu filho não puder ser denunciado e enquadrado e perder o pátrio poder, se persistir em seu comportamento reprovável. Aliás, imagino que, com a vigência da lei da palmada, cedo chegará o dia em que pais e mães denunciados por palmadas desobedecerão a ordens judiciais e instruções de psiquiatras para serem corretos e normais e, portanto, o Estado os meterá na cadeia e lhes tomará os filhos, que terão seu futuro garantido, sob a guarda eficiente, carinhosa e científica de instituições modeladas na Funabem.

Assim como os fumantes oneram a saúde pública com as doenças causadas por seu feio vício, também o fazem os obesos, com seus problemas cardíacos, sua diabete, sua hipertensão. E não se pode esquecer que, caso essas pessoas de conduta e aparência condenáveis tenham filhos, estarão delinquindo ainda mais, pelo mau exemplo. Espero que em breve um dos mil braços do governo estabeleça padrões alimentares a que as famílias terão que obedecer, pelo bem de sua saúde e sob pena de suas compras de alimentos só poderem ser feitas sob a orientação de um técnico credenciado. Claro, ovo já foi um horror e hoje é permitido e até encorajado. Margarina já foi aclamada como o substituto sadio da manteiga e hoje é execrada. São as verdades científicas.

Ao contrário do que chegou a divulgar-se, os defensores da censura a Monteiro Lobato não foram derrotados nem alteraram suas posições. O livro pode ser lido, mas sob a supervisão de um professor com qualificações específicas. Ou seja, em última análise, um técnico em leitura literária, um guia. Diretamente, sem intermediários, o livro não pode ser lido. Acredita-se que existe a maneira certa de ler, entender e apreciar um determinado livro. As maneiras que não se encaixem no padrão correto são, por consequência, errôneas e inadmissíveis. Daí se passará, imagino eu, à exigência de que os livros, não somente na escolas, mas entre o público em geral, só possam circular depois de lidos pelos técnicos, que escreveriam uma espécie de bula ou modo de usar, para que os leitores apreendessem corretamente a leitura. Claro, não é censura, é apenas a aplicação da verdade científica ou objetiva.

Aliás, falando em livros há outras novidades, ainda no terreno da cultura. O plano é mudar a lei dos direitos autorais. Os proponentes das mudanças dizem que não estão de fato querendo mudar nada, porque todas as suas ideias estariam contidas em dispositivos legais já vigentes. Pergunta-se, nesse caso, por que é preciso fazer uma nova lei. Não sei bem, mas sei, pelo que já me foi contado, que a produção de cópias de livros ou textos sem pagar direitos autorais será permitida, contanto que para fins educativos. Ou seja, qualquer coisa, ainda mais no mangue educacional que é o Brasil. O sujeito escreve um livro que é adotado em classe e esse livro pode ter praticamente uma edição à parte, pois há máquinas que possibilitam isso, copiando um livro inteiro e cuspindo do outro lado volumes já encadernados, com capa e tudo. O autor não vê um centavo, embora os produtores da edição pirata se remunerem pelo seu trabalho de "difusão" e, principalmente, os fabricantes das máquinas ganhem.

Interessante isso. Acredita-se que um estudioso dedique anos de pesquisa e trabalho duro a produzir algo pelo qual não será pago, a não ser pela distinção de ser adotado nas escolas. Por que os funcionários do governo que lidam com cultura não abdicam de seus salários, já que a verdadeira cultura não pode ter preocupações materiais e o artista pode viver de brisa? Trabalhar para a cultura é isso, é ser filósofo e poeta aos olhos do grande público. Morrendo bêbado, tuberculoso e na sarjeta é ainda melhor, compõe o quadro romântico.

A interferência do Estado na elaboração, venda e circulação de livros e, acima de tudo, a tutela de seu uso, sua interpretação e sua avaliação não é mais nem autoritarismo, é totalitarismo fascistoide mesmo, é controle do pensamento. Mas moda é moda e, como ninguém reage, vão nos empurrando essas e outras goela abaixo, até o dia ideal em que não pensaremos mais, porque os pensadores certos já terão pensado tudo por nós.

domingo, 7 de novembro de 2010

POR QUE NÃO REESCREVEM TUDO, JOÃO UBALDO RIBEIRO, O GLOBO–7/11/2010

De uns tempos para cá, não sei se me engano, começaram a proliferar normas destinadas a controlar nossa conduta individual. Falei em algumas aqui e cheguei a aventar a hipótese de que uma agência governamental, ou qualquer outra das muitas autoridades a que vivemos subordinados sem saber, venha a estabelecer normas para o uso do papel higiênico e garantir sua observação através da instalação de câmeras nos banheiros de uso público. Nos banheiros domésticos, imagino que seriam suficientes umas visitas incertas de inspetores com gazuas, para tentar flagrar os que se asseassem ilegalmente. Não se trata somente de passatempo para burocratas entediados e sem mais o que fazer. Trata-se da convicção, que parece grassar truculentamente em toda parte, de que existe algo "certo", cientificamente certo e, portanto, todos devem comportar-se dentro do certo.

Se nas ciências físicas esse negócio de "certo" já é olhado com um pé atrás, nas ciências humanas, que nunca puderam aspirar ao nível de objetividade daquelas, a existência do "certo" é muito discutível, envolve necessariamente valores, valores que permeiam toda ação do homem e não são território da ciência e da objetividade.

Agora leio aqui nos jornais que a compulsão pelo certo acaba de atingir novo limite. Desta vez, por um parecer do Conselho Nacional de Educação, que opinou que o livro "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, deve ser proibido nas escolas públicas, por se tratar de obra racista. Sei que, entre vocês, há leitores de Monteiro Lobato que acharam que não entenderam o que acabaram de ler. Mas é isso mesmo: não pode "Caçadas de Pedrinho", porque é racista. Ou, por outra, pode, mas somente "quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil".

Eu não vou nem falar nos milhões de brasileiros de todas as idades e todas as gerações que viveram no mundo mágico criado por um dos maiores escritores universais, um gênio naquilo que fez melhor, motivo de orgulho para todos nós, Monteiro Lobato. Nem vou dedicar tempo a entender como é que foi que todos esses milhões, lendo, despreparados, livros racistas, não vieram mais tarde a abrigar preconceitos e ideias nocivas, instilados solertemente na consciência indefesa de crianças. Monteiro Lobato, com toda a certeza, tem tantos defensores quanto leitores, não precisa de mais uma defesa.

E que diabo é "compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil". A compreensão "certa"? Qual é a compreensão certa de um fenômeno que gera até brigas ferozes entre seus estudiosos e participantes? Estará correta a visão que vê no racismo um fenômeno causado exatamente pela diferença de raças? Terá mais razão o que vê na escravidão um fenômeno basicamente econômico e só secundariamente racial? Quem resolveu isso? Qual a posição oficial do governo? O professor que orientar a leitura de "Caçadas de Pedrinho" terá que saber.

Deus ajude as pobres crianças, torturadas com o que era antigamente somente um livro que as transportava para a fantasia, a aventura e o encantamento inocentes. Agora, ao que parece, o correto é a leitura tutelada, orientada.

Antigamente, a literatura infantil era liberdade, escape, território autônomo em que a imaginação do jovem, ainda não embotada pela experiência, o levava a uma felicidade mais tarde irreproduzível. Agora talvez se diga "você gostou disso, por aquilo; e não gostou disso, porque não é para gostar, está errado". A boa literatura dá lições como consequência, não como objetivo. Deve-se ensinar a ler por prazer, de maneira desarmada e aberta - e não há como desconfiar dos clássicos como Lobato, os clássicos são clássicos porque são clássicos. A literatura, como a vida, não é certinha. A ficção até que arruma os acontecimentos, lhes empresta enredos e sentidos que na vida real não têm. Mas, como a vida, a ficção mostra contradições, reflete dilemas, exibe defeitos, ilumina a existência humana. Quem entra num romance deve entrar sozinho, a viagem é individual e intransmissível.

E até mesmo essa conversa de necessidade de contextualizar o livro é bem discutível. No meu tempo de menino, ninguém precisou contextualizar os livros de Tarzan para aceitar a África dele, assim como não se contextualizava Robin Hood, D'Artagnan, Jorge Amado, Érico Veríssimo ou quem lá fosse que aparecesse num romance, a contextualização era automática, vinha do bom texto.

Finalmente, em que medida os defeitos não são subjetivos, ou seja, não estão apenas na mente e na percepção de quem os aponta? Existirá um racismômetro? E, mais ainda, não haverá outras áreas sensíveis? Acho que a adoção de mais controles é decorrência lógica e questão de justiça. Temos por exemplo a antropologia ultrapassada de Euclides da Cunha, o tal que falou no "mestiço neurastênico do litoral". É tão presente nele  essa visão antropológica superada (além de ofensiva a grupos raciais; eu mesmo sou mestiço neurastênico do litoral e as mulheres sempre me discriminaram) que o melhor seria mandar um antropólogo correto e moderno reescrever "Os Sertões', para quê o velho? Esperemos também alegações de violência contra mulheres (Barba-Azul), machismo (Bolinha), ódio a uma espécie em extinção (o lobo de Chapeuzinho Vermelho), exploração de deficientes verticais (os anões de Branca de Neve), apologia da bruxaria (a Bela Adormecida) e assim por diante. Olhando para trás, chego a ter um arrepio, em ver como escapamos por pouco de termos as personalidades deformadas pela leitura irresponsável dos clássicos, esses repositórios de traições, assassinatos, incestos, preconceitos, guerras, adultérios e tudo mais que o planejamento científico logo eliminará. Melhor por enquanto ficar longe deles e aguardar instruções das autoridades.

sábado, 18 de setembro de 2010

DIOGO MAINARDI: EXCESSO DE JOSÉ DIRCEU

“No fim, Dirceu voltou a tratar da imprensa. Ele antecipou que pretende dizer o seguinte, quando Dilma estiver eleita: ‘Ó, não adiantou nada. Estamos aqui mais quatro anos’. Dirceu está certo. Ó, não adiantou nada”.

O problema do Brasil é o excesso de liberdade da imprensa. Quem disse isso, em outras palavras, durante um encontro com sindicalistas baianos, foi José Dirceu. Eu digo o contrário. Eu digo que o problema do Brasil é o excesso de liberdade de José Dirceu.

Duas semanas atrás, em sua página no Twitter, Indio da Costa publicou uma fotografia que resume perfeitamente o excesso de liberdade de José Dirceu. Ele está no Rio de Janeiro, na pista do Aeroporto Santos Dumont, embarcando num jato particular, um Citation 10 com o prefixo PT-XIB. O excesso de liberdade da imprensa permite indagar quem sustenta o excesso de liberdade de José Dirceu.

O plano de José Dirceu para eliminar o problema do excesso de liberdade da imprensa tem duas partes. A primeira parte é a montagem de um sistema estatal que controle a atividade das empresas jornalísticas e que puna qualquer tentativa de fazer aquilo que ele chamou de “abuso do poder de informar”. Isso mesmo: Conselho Federal de Jornalismo. Isso mesmo: Ancinav. Isso mesmo: Confecom.

A segunda parte do plano de José Dirceu é aliar-se a empresários do setor da imprensa exatamente como o PT se aliou a José Sarney e a Renan Calheiros no Congresso Nacional. “O momento histórico que estamos vivendo”, segundo José Dirceu, é ruim para o “movimento socialista internacional”. Por isso, em vez de tentar fazer seu próprio jornal, o PT deve continuar negociando com alguns grandes grupos. Na prática, isso significa garantir o excesso de liberdade do bispo Edir Macedo e da Rede Record.

No mesmo encontro em que apresentou seu plano para eliminar o excesso de liberdade da imprensa, José Dirceu apresentou também seu plano para a reforma política. De acordo com ele, é necessário duplicar ou triplicar imediatamente a quantidade de dinheiro público destinada aos partidos. Ele advertiu que, sem esse dinheiro, o PT prosseguirá com suas práticas de “caixa dois, corrupção, nomeação dirigida, licitação dirigida, emenda dirigida, superfaturamento e tráfico de influência”.

José Dirceu disse que, no poder, o PT valorizou o servidor público. Claro que é verdade: o filho de Erenice Guerra valorizou-se, o outro filho de Erenice Guerra valorizou-se, o irmão de Erenice Guerra valorizou-se, a irmã de Erenice Guerra valorizou-se. José Dirceu falou até sobre a saúde de Dilma Rousseff, desmentindo o que ela própria diz sobre o assunto: “Ela passou por um câncer. E sente muito isso ainda”.

No fim de seu encontro com os sindicalistas baianos, José Dirceu voltou a tratar da imprensa. Ele antecipou que pretende dizer o seguinte, quando Dilma Rousseff estiver eleita: “Ó, não adiantou nada. Estamos aqui mais quatro anos”.

José Dirceu está certo. Ó, não adiantou nada.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

DEMÉTRIO MAGNOLI: OGRO, SIM, SENHOR!

O Globo, 16/09/10

“O poder central, no México, não reside no capitalismo privado nem nas associações sindicais nem nos partidos políticos, mas no Estado. Trindade secular, o Estado é o Capital, o Trabalho e o Partido. Não obstante, não é um Estado totalitário nem uma ditadura.” Octavio Paz caracterizou desse modo o sistema político de seu país num texto seminal de 1978, O Ogro Filantrópico. Sugiro a leitura aos analistas que se eriçam agressivamente diante da sugestão de que há risco real de “mexicanização” da democracia brasileira remodelada pelo lulismo.

Traçar um paralelo não é postular uma identidade. Paralelos servem para iluminar uma similitude crucial. O sistema político brasileiro tende a cristalizar um bloco de poder hegemônico que exclui a possibilidade de alternância no governo e emerge como fruto da imbricação do Estado com um leque de interesses expressos em partidos, grupos empresariais, elites sindicais e movimentos sociais. O México dos tempos áureos do Partido Revolucionário Institucional (PRI) é o melhor exemplo de um sistema dessa natureza.

Lula confessou, mais de uma vez, sua admiração por Ernesto Geisel. Sob a inspiração geiseliana, tão óbvia na interlocução com Delfim Netto, o lulismo assimilou a seu bloco de poder um setor do grande empresariado. As empresas estatais, os financiamentos subsidiados do BNDES e os capitais de fundos de pensão geridos por sindicalistas petistas são as ferramentas dessa assimilação, que abrange grupos de telecomunicações, empreiteiras, conglomerados da petroquímica e da siderurgia. Na interface das alianças entre capitais públicos e negócios privados vicejam intermediários com acesso privilegiado ao governo. O castrista José Dirceu aprendeu as delícias de um capitalismo de favores que renasce no rastro “etapa chinesa” da globalização e propicia uma troca de pele da economia brasileira.

Lula enxerga-se como sucessor de Getúlio Vargas, o “pai dos pobres” original. Sob o influxo do varguismo, seu governo repaginou o imposto sindical, cooptando as centrais sindicais e inserindo a elite adventícia de sindicalistas no bloco de poder. O aparato sindical chapa-branca, além de operar nos fundos de pensão, forjando alianças empresariais, também fornece uma tropa de choque “popular” para embates contra a oposição parlamentar. Quando se tentou instalar uma CPI sobre a Petrobrás, a CUT, a UNE e a ABI convocaram manifestações públicas para acusar senadores do crime de traição à Pátria. Em três anos, entre 2006 e 2009, tais entidades receberam R$ 12 milhões em financiamentos da estatal petrolífera.

Nenhum fenômeno histórico é igual a outro: paralelos servem, também, para iluminar diferenças. O PT não ocupa o lugar do PRI. Embora exerça funções essenciais que cabiam ao partido dirigente mexicano, especialmente a intermediação do governo com o sindicalismo e os movimentos populares, ele não serve como veículo partidário para as máfias políticas regionais. No bloco de poder do lulismo, essa função é exercida pelo PMDB e, marginalmente, por outros partidos da base governista. O paralelo, contudo, mantém sua relevância analítica: como no México de um passado recente, o arco político situacionista estende-se da esquerda à direita, dissolvendo barreiras doutrinárias. O clã Sarney, Fernando Collor, Jader Barbalho, Michel Temer, Ciro e Cid Gomes foram incorporados ao “partido de Lula”. Todos eles têm a prerrogativa de subordinar a seus interesses um fragmento do Estado neopatrimonalista.

Um sistema político de tipo “mexicano” nada tem de harmônico. As forças incongruentes que participam do bloco de poder se encontram em incessante concorrência pela captura e manutenção de posições estratégicas no “ogro filantrópico”. A guerrilha intramuros, mais relevante que as escaramuças eleitorais com uma oposição fadada à derrota, realiza-se por meio da negociação e da chantagem. Quando não se alcança um compromisso, vazam-se informações sigilosas que detonam escândalos de corrupção. O “fogo amigo”, que atingiu um ápice no episódio do mensalão, expõe periodicamente ao público, como clarões na noite, imagens caleidoscópicas das entranhas do poder.

O lulismo é uma obra em construção. Há anos Lula acalenta a ideia, várias vezes explicitada, de erguer um partido mais amplo que o PT. A indicação pessoal de Dilma Rousseff como sucessora, um dedazo bem ao estilo mexicano, foi apenas o primeiro golpe assestado contra o PT nas eleições em curso. Em Minas Gerais, no Maranhão, no Paraná, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, o presidente pôs seu partido de joelhos, impondo-lhe a submissão a grupos políticos hostis e quebrando a espinha da militância petista tradicional. O triunfo eleitoral da candidata palaciana pode representar uma plataforma para a edificação do almejado “partido de Lula”. Nessa hipótese, que demanda a destruição do PT, o sistema político brasileiro derivaria um pouco mais no rumo da “mexicanização”.

Não havia no regime do PRI um centro de poder personalista e carismático. O presidente funcionava apenas como gerente temporário do bloco de poder, não dispondo do direito de exercer mais de um mandato. O gesto de nomeação do sucessor, o dedazo, simbolizava tanto o seu zênite quanto o início de seu ocaso definitivo. No Brasil do lulismo, ao contrário, o centro de poder corporifica-se na figura carismática de Lula - que, com o dedazo, pretende perpetuar essa sua condição. Tal diferença não é um detalhe, gerando interrogações decisivas sobre o futuro do sistema político brasileiro. Será Lula capaz de exercer a arbitragem do bloco de poder que construiu sem dispor da caneta presidencial? No presidencialismo brasileiro, é possível governar a partir dos bastidores, por intermédio de um fantoche?

O registro da “mexicanização” permite, ao menos, identificar as perguntas certas. É tudo o que se quer de um paralelo.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

DIOGO MAINARDI: DILMA 1,99 ROUSSEFF

Dilma Rousseff teve uma loja de produtos importados. O empreendimento durou menos de um ano e meio. Se Dilma Rousseff mostrar como presidente da República o mesmo talento que mostrou como empresária, o Brasil já pode ir fechando as portas.

Dilma Rousseff era uma apaniguada do PDT. Quando saiu do PDT, ela virou uma apaniguada do PT. Desde seu primeiro trabalho, trinta anos atrás, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Dilma Rousseff sempre foi assalariada do setor estatal. E no setor estatal ela sempre foi apadrinhada por alguém. O PT loteou o estado. Nesse ponto, Dilma Rousseff é a mais petista dos petistas. Porque durante sua carreira todos os cargos que ela ocupou foram indicados por alguma autoridade partidária. Dilma Rousseff é o Agaciel Maia dos Pampas. Ambos pertencem à mesma categoria profissional. Tiveram até cargos análogos. Agaciel Maia, apaniguado de José Sarney, foi nomeado diretor-geral do Senado.

Dilma Rousseff, apaniguada de Carlos Araújo, foi nomeada diretora-geral da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Além de ser um dos mandatários da esquerda gaúcha, Carlos Araújo era também o marido de Dilma Rousseff, garantindo esse gostinho pitoresco de Velha República cartorial e nepotista.

A loja de produtos importados de Dilma Rousseff foi inaugurada em 1995. Fechou quinze meses depois. Foi o primeiro e último trabalho que ela teve fora do sistema de loteamento partidário. Deu errado. Carlos Araújo, seu financiador, acabou perdendo dinheiro. O dono de uma tabacaria localizada perto da loja de Dilma Rousseff contou o seguinte à Folha de S.Paulo: “A gente esperava uma loja com artigos diferenciados, mas quando ela abriu era tipo R$ 1,99”. A especialidade de Dilma Rousseff eram os brinquedos chineses importados da Zona Franca de Colón, no Panamá. Em particular, os bonecos dos “Cavaleiros do Zodíaco”, escolhidos pessoalmente por ela. O Brasil de Dilma Rousseff será assim: um entreposto de muambeiros panamenhos inteiramente tomado pela pirataria chinesa. É o Brasil a R$ 1,99. Dilma Rousseff, com seu mestrado galáctico, será nossa Saori Kido, a Deusa da Sabedoria dos “Cavaleiros do Zodíaco”. José Dirceu, com sua armadura vermelha, será nosso Dócrates mensaleiro.

Depois de falir como comerciante, Dilma Rousseff voltou correndo para o aparelho estatal, onde ninguém perde dinheiro e o único cliente é o partido. A loja de produtos panamenhos e chineses foi convenientemente expurgada de sua biografia oficial. O fracasso do empreendimento, porém, revela a verdadeira natureza de Dilma Rousseff: ela só existe como um acessório do PT, exatamente como os sabotadores da Receita Federal que violaram o imposto de renda da filha de José Serra e fraudaram seus documentos. O Brasil está à venda por R$ 1,99. Ou fechamos as portas de Dilma Rousseff, ou ela fechará as nossas portas.

domingo, 15 de agosto de 2010

O LEVIATÃ PEGA, João Ubaldo Ribeiro (O Globo, 15/8/2010)

Acho que já falei aqui numa comadre minha que diz que tudo é trauma de infância. Inclino-me a concordar com ela e, muitas vezes, nem tenho de escarafunchar muito essa remotíssima fase de minha vida para descobrir a origem de certas inquietações do presente. O Leviatã é um exemplo claro, porque meu medo dele vem desde o tempo em que, no meio da livrama de meu pai, eu topava com as ilustrações de Gustave Doré para a Bíblia e lá estava o tremendo monstro, contra o qual, assegurava o texto, o bronze das espadas era palha, ou seja, não adiantava nada. E devo ter misturado isso com alguma outra ilustração, provavelmente do clássico de Thomas Hobbes intitulado Leviatã, com que também topei nessa época, tentei ler para ver se vencia o medo, não entendi nada, desisti e o trauma deve ter persistido, ou piorado.

Hobbes é comumente tido, numa simplificação bastante grosseira e mesmo injusta, como uma espécie de teórico do absolutismo. E foi assim que me falaram dele nas escolas. Para mim o Estado hobbesiano, onde o poder se concentra no que ele chama de "soberano" e o súdito não tem ingerência no governo, passou a ser definitivamente aquele monstro das ilustrações. Depois, com a leitura de 1984 e a chegada de um tempo onde, fotografados, filmados e gravados, estamos cada vez mais submetidos a alguma espécie de controle, ou pelo menos vigilância controladora, o bicho vem me assombrando bastante e devia assombrar vocês também, porque vamos facilitando, vamos facilitando e daí a pouco ele nos engole a todos.

E essa engolição não vai ter nem a colher de chá do Estado hobbesiano. Nele, de fato o soberano detinha todo o poder, mas também tinha o dever básico de dar segurança ao súdito, pois, afinal só ela conteria o lobo do homem e era para isso que o pacto social existia. Aqui no Brasil, o nosso Leviatã já engole mais de um terço do que ganham os pobres e remediados (e nada dos verdadeiramente ricos) e não dá segurança nenhuma. Se esta for entendida como algo além de garantias contra a violência e abranger, por exemplo, a saúde, sabemos que o monstro, além de comer todo o dinheiro que pode, obriga os súditos a contratar planos médicos privados e nem mesmo estes resolvem, pois o bicho permite que façam o que bem entendam, inclusive tungar safadamente os que há décadas pagam por eles os olhos da cara.

O Leviatã de Gustave Doré, se bem revejo na mente as gravuras da infância, tinha tentáculos semelhantes aos de um polvo. É uma boa imagem para o que nos acontece hoje em dia, a toda hora um novo tentáculo se estendendo sobre nós, uma chuva de normas, cartilhas, orientações, admoestações, avisos, cobranças, proibições, restrições, instruções e assemelhados, vinda aparentemente de mil direções, que ninguém conhece direito e a que todo mundo obedece sem questionar. Sabe-se, mais ou menos vagamente, da existência de agências reguladoras hoje muito ativas, tripuladas por sabe-se lá quem, todas empenhadas em emitir regras para a nossa conduta. Ninguém elegeu esse pessoal, ninguém foi nem ouvido nem cheirado quanto a sua nomeação (vai ver que alguns, ou todos, foram ouvidos preliminarmente no Congresso, mas isso e nada todo mundo sabe que quer dizer a mesma coisa, até porque muitos dos nomeados para as agências devem ter sido indicados por deputados ou senadores), mas eles fazem o que querem e, mesmo quando quebram a cara, quem paga o prejuízo somos nós.

Cabe recordar pela milésima vez, como uma espécie de dever cívico, aquela regulada que deram nos motoristas, obrigando todos a trafegar com um tal kit de primeiros socorros. Todos os donos de carro compraram o kit, que só tinha um fabricante, o qual, naturalmente, encheu o rabo de dinheiro, assim como, certamente, outros envolvidos na operação. Concluiu-se que o kit não valia nada e era até prejudicial, mas ninguém foi investigado e muito menos punido, os súditos morreram na grana que os espertalhões faturaram e ficou tudo por isso mesmo. Mais recentemente, veio o tal assento para crianças, que de novo beneficia fabricantes, ou fabricante, e é uma medida de meia pataca, porque não pode ser aplicada a táxis, ônibus e vans, além de causar problemas de vários tipos. Mas todo mundo se esquece disso, compra o raio da cadeirinha e segue obedecendo.

Torcer no futebol já está regulamentado, mas não é descabido prever que cada clube venha a ser obrigado a pagar danos morais ao juiz chamado de ladrão por seus torcedores. Curtir com a cara do perdedor, nem pensar. O técnico que ficar na beira do campo soltando palavrões também será multado e mal posso esperar o dia em que emanarão do banco instruções como "meu anjo, vê se te deslocas mais expeditamente!". E o atacante vai pedir um cruzamento exclamando "alça-me o balão de couro, companheiro!". Quanto a piadas, não só de futebol mas quaisquer outras, atualmente já proibidas em relação aos candidatos, certamente também serão objeto de restrições impostas pela necessidade de que vivamos numa sociedade absolutamente livre de discriminações ou preconceitos de toda espécie. Não pode piada que, de alguma forma, mostre qualquer categoria social ou humana sob uma luz considerada pejorativa. Ou seja, não pode piada nenhuma, mesmo porque as que se refiram a animais, como as de papagaio, estarão sujeitas ao crivo rigoroso do Ibama, pois nunca se sabe quando uma piada poderá induzir a um crime contra um animal protegido. Talvez se crie - e fica a sugestão, é mais uma porção de cargos para preencher - uma base nacional de piadas, cadastrando todas as permitidas, é só checar antes de contar. Agora que dá para comparar, o monstro de Gustave Doré não era tão feio assim, bons tempos.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Ministério da utopia

Demétrio Magnoli, O Globo – 5 de agosto de 2010.

Intelectuais tendem à utopia, pois ela precisa de uma descrição e eles são seus autores. Isaiah Berlin não está entre os filósofos mais célebres precisamente porque é um pensador antiutópico. "As utopias têm o seu valor - nada amplia de forma tão assombrosa os horizontes imaginativos das potencialidades humanas -, mas como guias da conduta elas podem se revelar literalmente fatais", anotou Berlin. As utopias almejam a completa realização de um conjunto de premissas, com a exclusão de todas as outras. É um caminho muito perigoso, "pois, se realmente acreditamos que tal solução é possível, então com certeza nenhum preço será alto demais para obtê-la".

A democracia constitui um sistema político avesso à utopia porque, por definição, rejeita atribuir estatuto de verdade incontestável a qualquer conjunto de premissas ideológicas. Os intelectuais utópicos têm um lugar na democracia - o de instigadores do debate público. Mas o sistema democrático de convivência de ideias contraditórias se estiola quando eles são alçados à posição de sábios oficiais e suas utopias são convertidas em verdades estatais.

Samuel Pinheiro Guimarães, até outro dia secretário-geral do Itamaraty, foi guindado à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). No novo cargo, elaborou um documento intitulado O Mundo em 2022, ainda em versão preliminar, que circula no governo e no Itamaraty. Trata-se de um delineamento das tendências do sistema internacional, com propostas de políticas estratégicas do Brasil. Dito de modo direto, é a plataforma de uma utopia ultranacionalista, a ser aplicada num hipotético governo de Dilma Rousseff, que colide com os valores e as tradições da democracia brasileira.

Num texto escrito em português claudicante, o intelectual utópico expõe uma doutrina antiamericana que solicita uma curiosa articulação estratégica entre Brasil, Rússia, Índia e China "para reformar o sistema internacional e torná-lo menos arbitrário". Os Brics, acrônimo cunhado no interior de um banco de investimentos, constituem um "bloco" apenas na acepção restrita de que seus integrantes passaram a influenciar a governança econômica global. Eles, porém, não compartilham interesses geopolíticos relevantes - uma evidência clamorosa que escapa por completo à percepção de Guimarães, moldada por um obsessivo antiamericanismo.

Os equívocos teóricos pouco significam, perto das prescrições políticas. Nostálgico do "Brasil-potência" dos tempos de Ernesto Geisel, Guimarães atribui ao Estado os papéis de "estimular o fortalecimento de megaempresas brasileiras (...) para que possam atuar no cenário mundial globalizado" e de conduzir um programa de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de amplas implicações militares. Os significados desta última proposição podem ser entrevistos na passagem em que o autor define o Tratado de Não-Proliferação Nuclear como o "centro" de um processo ameaçador de "concentração de poder militar". A leitura do documento oferece indícios sugestivos para a compreensão da lógica subjacente à aproximação entre Brasil e Irã e à operação diplomática brasileira de cobertura do programa nuclear iraniano.

No programa ultranacionalista, ausências falam tanto quanto presenças. Ao longo de 54 itens, não há nenhuma menção aos direitos humanos. Não é surpreendente: um livro de Samuel Pinheiro Guimarães, publicado em 2006, qualificou a defesa dos "direitos humanos ocidentais" como uma forma de dissimular "com sua linguagem humanitária e altruísta as ações táticas das Grandes Potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos". A militância do governo Lula contra a política internacional de direitos humanos - expressa na ONU, em Cuba, no Irã, no Sudão, na China e em tantos outros lugares - não é um fenômeno episódico, mas reflete uma visão de mundo bem sedimentada.

Lastimavelmente, as ONGs brasileiras de direitos humanos financiadas pela Fundação Ford trocaram a denúncia de tal militância pela aliança com o governo na difusão da doutrina dos "direitos raciais".

A utopia regressiva de Samuel Pinheiro Guimarães colide com a Constituição, que veta a busca de armas nucleares e situa a promoção dos direitos humanos no alto das prioridades de política externa do Brasil. Se a sua plataforma política aparecesse na forma de artigo, isso não seria um problema - e, talvez, nem mesmo uma fonte de debates interessantes. As coisas mudam de figura quando ela emerge como documento de Estado, produzido num Ministério encarregado de formular as diretrizes estratégicas do País.

O governo Lula exibe, sistematicamente, inclinação a partidarizar o Estado. A contaminação ideológica da política externa é uma dimensão notória dessa inclinação. Há, contudo, um antídoto contra a doença, que é a supervisão parlamentar das diretrizes estratégicas de política externa. Nos EUA, uma nação presidencialista como a nossa, as prioridades e os orçamentos do Departamento de Estado são submetidos ao crivo do poderoso Comitê de Relações Exteriores do Senado, expressão do controle social, bipartidário, sobre uma política de Estado. O Senado brasileiro tem uma Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Entretanto, sua gritante ineficácia, que exprime uma carência quase absoluta de poder real, proporciona ao governo as condições para a continuidade da folia ideológica em curso.

A SAE foi concebida como uma jaula dourada para acomodar (e ridicularizar) Roberto Mangabeira Unger, quando ele aderia ao governo que definira como "o mais corrupto da história". Agora, sob Guimarães, a jaula transforma-se em linha de montagem de uma utopia ultranacionalista que funcionaria como a régua e o compasso da inserção internacional do Brasil. A Nação tem o direito inalienável de se proteger contra o Ministério da Utopia, sujeitando a política externa ao escrutínio democrático dos parlamentares.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Reintegração de posse

Denis Lerrer Rosenfield – O Globo, 2 de agosto de 2010.

O programa de governo da candidata Dilma Rousseff foi muito contestado por ter sido, em sua primeira apresentação, uma cópia fiel do programa do PT de fevereiro de 2010. A polêmica suscitada fez que houvesse uma substituição por novo programa, de julho deste ano, o qual introduziu poucas alterações substanciais, entre elas, a retirada da dita mediação no cumprimento de mandados judiciais de reintegração de posse.

Observemos que o 3.º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) foi muito criticado por seu forte componente liberticida, numa lista quase interminável em que constava igualmente o estabelecimento de condições restritivas para o cumprimento de decisões judiciais de reintegração de posse. Tendo sido esse ponto retirado, parecia que o contencioso estaria resolvido. Certo? Não, errado!

A relativização de decisões judiciais já está em curso, num evidente desrespeito ao Poder Judiciário. Em 11 de abril de 2008 foi editado um Manual de Diretrizes Nacionais para a Execução de Mandados Judiciais de Manutenção e Reintegração de Posse Coletiva pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, Departamento de Ouvidoria Agrária e Mediação de Conflitos. Ou seja, o que o PNDH-3 procurou fazer foi apenas tornar legal uma medida em curso, com o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) decidindo as condições de cumprimento de decisões do Poder Judiciário. É espantosa essa ingerência em decisões de outro Poder, como se a Ouvidoria Agrária pudesse decidir por ela mesma sob que condições pode ou não operar a polícia.

Chama a atenção o vocabulário utilizado. As invasões, com sequestro de pessoas, destruição de maquinário, morte de animais, uso ostensivo de facões, às vezes de armas de fogo, utilização de crianças como escudo, incêndio de galpões, são denominadas "ocupações". Se uma pessoa tiver sua casa ou seu apartamento invadido, não se esqueça, não se trata de uma invasão, mas de uma "ocupação". Como se não fosse suficiente, a cartilha fala dos "direitos humanos" dos "ocupantes", não dos "ocupados", isto é, dos invadidos.

A inversão é total. Quando da proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, no início da Revolução Francesa, ficou claro que ela visava os direitos fundamentais dos indivíduos, dentre os quais, os direitos de expressão, circulação, pensamento e de propriedade. Ora, estamos diante de uma verdadeira perversão, pois a doutrina dos direitos humanos está sendo usurpada para sufocar os direitos individuais e o direito de propriedade, sem os quais falar de direitos humanos se torna uma expressão vazia.

Dentre as providências do manual, consta que a unidade policial, ao receber a "ordem de desocupação", deverá articular com o "Ministério Público, o Incra, a Ouvidoria Agrária Regional do Incra, a Ouvidoria Agrária Estadual, a Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública, as Comissões de Direitos Humanos, a Prefeitura Municipal, a Câmara Municipal, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Delegacia de Reforma Agrária, a Defensoria Pública, o Conselho Tutelar e demais entidades envolvidas com a questão agrária/fundiária para que se façam presentes durante as negociações e eventual operação de desocupação".

Tive o cuidado de fornecer essa lista exaustiva com o intuito de mostrar que tal condição simplesmente dilataria ou inviabilizaria o próprio cumprimento da decisão judicial. Qualquer uma dessas entidades poderia dizer que não está de acordo com um ou outro ponto, postergando indefinidamente sua execução.

Atente-se, na lista, para a presença do Incra e da própria Ouvidoria Agrária. Ora, essas entidades têm sistematicamente sido partes envolvidas nos processos, defendendo a posição dos ditos movimentos sociais, verdadeiras organizações políticas de caráter leninista, que contestam a economia de mercado, o direito de propriedade, o Estado de Direito e a democracia representativa. Seus modelos de sociedade são Cuba e a Venezuela de Hugo Chávez. O MST estaria, então, dos dois lados do balcão: como invasor e por meio de seus representantes em algumas dessas instâncias.

Observe-se, ainda, que a cartilha contempla que todas essas instâncias participariam das "negociações" para o cumprimento de decisões judiciais. Ora, decisões judiciais são para ser cumpridas, e não negociadas por representantes indiretos dos próprios invasores ou por outras instâncias do Executivo ou da sociedade. Teríamos aqui uma inovação "revolucionária": o MDA e os por ele designados negociariam as condições de cumprimento ou não de uma decisão judicial. Estariam "ocupando", dito melhor, "invadindo" as funções próprias do Judiciário. Eis por que o manual chega a falar de "eventual operação de desocupação". De fato, ela se tornaria totalmente eventual, se não aleatória.

Outra obra-prima da cartilha diz respeito a que a polícia não realizará o "desfazimento de benfeitorias existentes no local ou a desmontagem de acampamento", salvo por decisão voluntária dos "ocupantes", isto é, dos invasores. A destruição de benfeitorias das propriedades pelos invasores é permitida, porém as supostas benfeitorias e os acampamentos dos invasores devem permanecer intactos. Aqueles que foram invadidos deveriam manter intocadas as "obras" dos invasores, não podendo dispor integralmente de suas propriedades.

O festival de arbitrariedades parece não conhecer limites. Ainda na operação de "desocupação", a polícia, perante os "negociadores", "dependerá de prévia disponibilização de apoio logístico, tais como assistência social, serviços médicos e transporte adequado, que deverá ser solicitado, por ofício, à autoridade judicial competente". Por que não utilizar os próprios ônibus e automóveis que foram empregados pelos invasores? Por que não utilizar o apoio logístico da organização revolucionária? Por que o contribuinte deve pagar por isso?

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Use corretamente o papel higiênico

JOÃO UBALDO RIBEIRO - O GLOBO - 23/05/10

Creio que sempre tivemos a mania de regular a conduta alheia e estabelecer normas para atos que não deviam ser da conta de ninguém, exceto os envolvidos. Mas, ultimamente, parece que isso está deixando de ser um vício burocrático, para virar moda. Todo dia algum brioso engenheiro social inventa regras para a nossa conduta, muitas delas com a finalidade de nos proteger de coisas contra as quais não queremos ser protegidos, como acontece com as novas disposições relativas a balcões e prateleiras de farmácias. E, povo acostumado a comportar-se como se direitos básicos, a exemplo da liberdade de ir e vir ou de pensar e expressar-se livremente, constituíssem outorgas do Estado, somos cada vez mais tiranizados por esses abusos e, daqui a pouco, se não prestarmos atenção, teremos de preencher um formulário do Ministério da Saúde, justificando nosso pedido de carne vermelha num restaurante.

Lembro a tentativa de regular nossa linguagem, através da adoção de termos e expressões politicamente corretos. Seus proponentes afirmavam que se tratava apenas de sugestão, mas, por obra de nossa índole ovina, é claro que, dali a poucas semanas, estaria o Brasil inteiro usando a língua pasteurizada que imaginavam ser a adequada ao bom convívio social. Não duvido nada - e, sinceramente, não acho que estou exagerando muito - que baixem normas para a utilização do papel higiênico. Apareceriam especialistas e se produziria uma exposição de motivos em que se aludiria às várias posturas adotadas em relação ao delicado problema, provavelmente a escola centrífuga, a centrípeta e a eclética. Em mais uma demonstração do engenho nacional, todas as três seriam rejeitadas, em favor do padrão brasileiro, único no mundo e o mais avançado entre todos. A desobediência às normas implicaria sanções, mas ninguém precisaria ficar preocupado com a invasão de sua privacidade, pois o monitoramento do uso de papel higiênico só seria realizado depois de autorização judicial. Quem quiser que pense que isto é delírio.

Agora está em curso no Congresso Nacional a chamada lei da palmada, projeto que pretende tornar ilegal qualquer castigo físico de crianças, inclusive eventuais palmadas dadas pelos pais. Certamente estão incluídos aí puxões de orelha, beliscões, cascudos, petelecos e até mesmo empurrões, se bem que a epistemologia do empurrão deva dar algum trabalho, na hora de distinguir o empurrãozinho do maltrato. Isso, contudo, perde em complexidade para o banho. Como não ignoram muitos pais e a figura ilustre do Cascão não me deixa mentir, há crianças que, levadas ao banho, agem como se estivessem sendo esfoladas vivas. Para quem o abomina, banho não será violência? De que jeito a mãe agirá, até para não ser denunciada às autoridades pelo filho? Suponho que, no espírito da lei, contratará um psicólogo para, com alguns meses de trabalho, induzir o imundinho a se lavar, tudo muito prático, racional e moderno.

Leio também que o projeto prevê que os pais pilhados dando palmadas nos filhos terão de submeter-se a consultas com psicólogos ou psiquiatras. Quer dizer que, se o sujeito der uma palmada no filho, vai ser considerado de alguma forma anormal, doente mental ou desajustado e se verá obrigado a ser normal, sob as penas da lei. Que diabo é ser normal? É o que o psiquiatra me diz? Ele sabe o que é normal? Que é um indivíduo bem ajustado? Isso não é uma questão científica, é uma questão de valores, não é um problema para o método científico, é um problema filosófico. Não pode haver definição científica da conduta "certa". Todos sabem que quem é doido num contexto pode não sê-lo em outro e o bom ajustamento social às vezes não passa de conformismo, pobreza de horizontes, mesmice e ausência dos questionamentos que movem pessoas e coletividades. Agora o que se pretende é que muitos de nós nos vejamos ameaçados pela perspectiva de que lhe impinjam como compulsória a visão de normalidade de um psiquiatra ou psicólogo. E, se os pais se recusarem a essa consulta ou tratamento, estarão sujeitos a alguma pena adicional, perderão o pátrio poder, serão internados numa clínica especializada? E, se o consultado disser que o psiquiatra é um cretino e se recusar a seguir suas prescrições, sofrerá as mesmas punições? Será encaminhado a uma junta onisciente de psicodoutores, cujo laudo irrecorrível poderá render-lhe interdição ou prisão? Quiçá lobotomia, para os casos renitentes? Duvido muito que os psiquiatras concordem com isso, a não ser os que alimentem fantasias de transformar o mundo num grande manicômio, entre neurolépticos, ansiolíticos, antidepressivos e sossega-leões.

Apresentam-se os argumentos habituais de que a Suécia, o Zuribequistão Exterior e a Baixa Eslobóvia adotaram legislação semelhante. Os suecos vão à praia nus, na companhia de vizinhos, família e amigos. Aqui, devido a nosso vergonhoso atraso, isso é suruba. Ou seja, o que é bom para sueco é bom para sueco e não há razão para crer que o que funciona lá seja verdade universal. Se o sueco queima a rosca, queimá-la-emos nós também? O Estado não consegue, em lugar nenhum do Brasil, tirar as crianças abandonadas da rua, prevenir as sevícias medonhas sofridas por elas e denunciadas todo dia, dar horizontes a milhões de meninos e meninas. Mas agora, na esteira de seus inúmeros êxitos nessa área, acha de criar novas leis, como se as existentes, cumpridas fossem, não bastassem folgadamente. Vão se catar, vão procurar o que fazer, chega de besteirol, chega de nos empurrar burrice inconsequente goela abaixo. Bem melhor fariam, se cuidassem das reformas que realmente importam, as esquecidas que nunca foram feitas, a tributária, a administrativa, a política, a... Sim, e vejam se consertam a safadagem sem lei e sem ordem em que, para a maioria dos brasileiros, o Congresso e a política se transformaram.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Corrupção e intolerância no reino do Casal K

Dupla governante da Argentina multiplica fortuna, acossa críticos e fragiliza a democracia no país

José Casado – O Globo, 9 de maio de 2010.

BUENOS AIRES. Ex-presidente e marido de Cristina, atual presidente da República, ex-governador e deputado nacional, chefe do Partido Justicialista (peronista) — o maior do país — e pré-candidato à Presidência da Argentina na eleição de 2011. Desde a semana passada, Néstor Carlos Kirchner ostenta um outro distintivo: secretário-executivo da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), a nova instância da burocracia diplomática regional patrocinada pelo governo Lula. Aos 60 anos, Kirchner é um personagem singular da vida argentina não só pelo poder que concentra, mas também porque se tornou um dos políticos mais ricos do país. Desde que Néstor e Cristina entraram na Casa Rosada, sede do governo argentino, há 84 meses, o patrimônio do clã Kirchner aumentou sete vezes e meia.

Ele foi presidente de maio de 2003 a dezembro de 2007, elegeu a sucessora, e ela governa desde 2008. Quando Néstor assumiu a Presidência, em 2003, os Kirchner declararam possuir US$ 1,9 milhão em patrimônio líquido (soma dos bens e créditos, descontadas as dívidas). Em março passado informaram ao fisco que sua riqueza crescera para US$ 14,2 milhões. Essa fortuna, registrada no Escritório Anticorrupção e na Câmara dos Deputados, foi multiplicada pelos Kirchner em velocidade recorde.

Inflação anual estaria em 31%

Embalados no célere enriquecimento e enlevados na supremacia política, os Kirchner acabaram prisioneiros no labirinto que eles mesmos construíram nos últimos sete anos com uma única porta de saída: a autocracia.

O resultado é um impasse institucional, confrontos do governo com o Congresso e o Judiciário, e a degradação cotidiana da democracia argentina.

Às evidências de descontrole da economia somou-se uma sucessão de escândalos de corrupção no governo (o mais recente é o da suposta cobrança de propinas no comércio com a Venezuela), que já asfixia a administração de Cristina.
Para o casal governante, o preço dessa “revolução” pela crise permanente tende a ser alto e foi sinalizado em uma derrota em eleições legislativas no ano passado, que semeou incertezas sobre a viabilidade da candidatura de Néstor Kirchner à Presidência no próximo ano. Mas o custo econômico é crescente para um país que mantém um terço da população na pobreza e 10% na indigência.

A inflação anual, medida por instituições privadas, saltou de 9,8% (maio de 2009) para 31% (abril de 2010). E cresce a procura por moeda forte: no centro de Buenos Aires, lojas caçam consumidores com dólares e euros oferecendo-lhes cotação até 20% acima da anunciada por bancos e casas de câmbio.

A intolerância domina os debates

Entidades e milícias patrocinadas pelo governo adotaram a rotina de escrachar “inimigos” — políticos, sindicalistas e personalidades não alinhadas, juízes autores de sentenças contrárias às decisões oficiais e jornalistas habitualmente críticos. Cooptados nos orçamentos ministeriais, líderes ativistas como Hebe de Bonafini, das Mães da Praça de Maio — célebres pelo pacifismo contra a ditadura militar — se dizem “instrumento” do kirchnerismo e promovem cerimônias medievalistas de “julgamentos” dos críticos do governo em praças públicas.

Bonafini, agora dona de rádio e vinculada a polêmicos programas estatais de crédito, comandou um “tribunal popular” contra jornalistas na semana passada. Vai dedicar o próximo aos juízes dos processos sobre corrupção governamental. Livros de análise política agora são percebidos como armas na Argentina dos Kirchner.

O país vive um “boom” da chamada literatura de não-ficção, como demonstra a Feira de Livros de Buenos Aires, que termina amanhã. Mas, ali, alguns dos lançamentos de obras que desagradaram à Casa Rosada foram abortados a cadeiradas por milícias governistas.

Época turva, constata o escritor Santiago Kovadlof, para quem o governo manobra com o medo, à procura de pretextos para a “decolagem da autocracia”:

- Hoje, a Argentina vive o medo da interpretação, porque ela pressupõe a polêmica.

Tenta-se impor a homogeneidade na análise política, ele observa:

— E esse “asseio” na linguagem da política, inevitavelmente, nos remete aos princípios de “pureza” do nacional-socialismo.

terça-feira, 4 de maio de 2010

A crise do jornalismo

Carlos Alberto Di Franco

O Globo, 3 de maio de 2010.

Recentemente, Juan Luis Cebrián, fundador e primeiro diretor do El País, foi entrevistado pela jornalista Laura Greenhalgh, editora executiva do jornal O Estado de S. Paulo. A entrevista, saborosa e inteligente, foi uma sincera reflexão sobre os avanços e recuos do nosso ofício. Cebrián viveu importante momento da história da imprensa espanhola. O El País, independentemente de certo alinhamento ideológico com o governo socialista, é um grande diário.

A crise que fustiga a nossa atividade é flagrada na radiografia do escritor. O que está em jogo é o próprio modo de fazer jornalismo. Cebrián intui a gravidade do momento. "A internet é um fenômeno de desintermediação", diz ele. "E que futuro aguarda os meios de comunicação, assim como os partidos políticos e os sindicatos, num mundo desintermediado?"

Só nos resta uma saída: produzir informação de alta qualidade técnica e ética. Ou fazemos jornalismo de verdade, fiel à verdade dos fatos, verdadeiramente fiscalizador dos poderes públicos e com excelência na prestação de serviço, ou seremos descartados por um leitorado cada vez mais fascinado pelo aparente autocontrole da informação na plataforma virtual. Um olhar, sincero e autocrítico, mostra alguns equívocos que aos poucos vão minando a credibilidade e comprometendo nossa capacidade de atrair e fidelizar leitores.

Algumas patologias, evidentes para quem tem olhos de ver, dominam alguns setores do jornalismo: engajamento ideológico, escassa especialização e preparo técnico, falta de apuração, reprodução acrítica de declarações não contrastadas com fontes independentes e, sobretudo, a fácil concessão ao jornalismo declaratório.

A recente enxurrada de matérias sobre abuso sexual na Igreja são um bom exemplo desses desvios. Setores da mídia definiram os abusos com uma expressão claramente equivocada: "pedofilia epidêmica". Poucos jornais fizeram o que deveriam ter feito: a análise objetiva do fatos. O exame sereno, tecnicamente responsável, mostraria, acima de qualquer possibilidade de dúvida, que o número de delitos ocorridos é muitíssimo menor entre padres católicos do que em qualquer outra comunidade. Em artigo recente, o conhecido sociólogo italiano Massimo Introvigne mostrou que, num período de várias décadas, apenas 100 sacerdotes foram denunciados e condenados na Itália, enquanto 6 mil professores de educação física sofriam condenação pelo mesmo delito. Na Alemanha, desde 1995, existiram 210 mil denúncias de abusos. Dessas 210 mil, 300 estavam ligadas ao clero, menos de 0,2%. Por que só nos ocupamos das 300 denúncias contra a Igreja? E as outras 209 mil denúncias? Trata-se, como já afirmei, de um escândalo seletivo.

Recentemente, repercutimos, sem qualquer análise crítica, declarações de um representante da Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII, sediada na Espanha. Pedia-se, num gesto carregado de ridículo, a demissão de Bento XVI. Ninguém, no entanto, perguntou o óbvio: Quem são os teólogos que integram essa entidade? Trata-se de uma ONG com credibilidade pública comprovada? Um mínimo de apuração jornalística mostraria que se trata de uma entidade de dissidentes, sem qualquer expressão. A Igreja, com sua história bimilenar e precedentes de crises muito piores, é um mistério. Mas, obviamente, não é um assunto para ser tocado com amadorismo ou engajamento.

A má qualidade da cobertura da pedofilia na Igreja é, a meu ver, a ponta do iceberg de algo mais grave. Não existe crise da mídia impressa. Existe, sim, uma grave crise no modo de fazer jornalismo. Reproduzimos, frequentemente, o politicamente correto. Não apuramos. Não confrontamos informações de impacto com fontes independentes. Ficamos reféns de grupos que pretendem controlar a agenda pública. Mas o jornalismo de qualidade não pode ficar refém de ninguém: nem da Igreja, nem dos políticos, nem do movimento gay, nem dos ambientalistas, nem dos governos. Devemos, sim, ficar reféns da verdade.

Mas algo parecido ocorre com a cobertura de política. O jornalismo declaratório, pobre e simplificador, repercute o Brasil oficial, mas fracassa no seu papel de fiscalizador do poder. Um exemplo, entre outros, confirma o que estou dizendo. Gastamos páginas repercutindo o obstinado apoio de Lula à ditadura cubana, mesmo com o risco de comprometimento de sua biografia. E não vamos à fonte que esclarece definitivamente as razões da estratégia do presidente da República. É só contar ao leitor a história do Foro de São Paulo. Lá está tudo, inclusive a matriz inspiradora do Plano Nacional de Direito Humanos (PNDH-3).

Como lembrou alguém, estamos diante de um projeto de corte radical-socialista, que está sendo implantado na Venezuela, no Equador e na Bolívia e que tem em Cuba o seu ponto de referência. Trata-se de um projeto destinado a mudar profundamente a nossa sociedade.

Vida, família, educação, liberdade de imprensa, liberdade de consciência, de religião e de culto não podem ser definidos pelo poder do Estado ou de uma minoria. A fonte dos direitos humanos é a pessoa, e não o Estado e os poderes públicos. Sempre que o Estado ocupa o espaço do indivíduo, a primeira vítima é a liberdade. A segunda, são os direitos humanos. Basta olhar para o brutal autoritarismo da ditadura cubana. Precisamos ir às raízes verdadeiras dos assuntos que ocupam a agenda pública.

Há espaço, e muito, para o bom jornalismo. Basta cuidar do conteúdo e estabelecer metodologias e processos eficientes de controle de qualidade da informação. E redescobrir uma verdade constantemente reiterada pelo jornalista Ruy Mesquita: o bom jornalismo é "sempre artesanato".

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Guerra ao excesso de sal

Pessoas consomem mais que o dobro do necessário. FDA quer limites legais

O Globo – 21 de abril de 2010.

Lyndsey Layton Do Washington Post*

O órgão que administra drogas e alimentos nos Estados Unidos (o FDA) está planejando um esforço sem precedentes para reduzir gradualmente o consumo diário de sal pela população. Segundo as autoridades de saúde, menos sódio na dieta pode evitar milhares de mortes por hipertensão e doença cardíaca. A iniciativa, que será lançada ainda este ano, vai determinar os primeiros limites legais de quantidade de sal permitida em produtos comestíveis e deve ter um impacto significativo no resto do mundo.

As pessoas só precisam de 1,5 grama de sal por dia, mas ingerem, em média, mais que o dobro dessa quantidade, ou cerca de 3,4 gramas diárias, o equivalente a uma colher e meia de chá. A grande maioria (77%) em alimentos processados.

Por isso, o governo pretende trabalhar em parceria com a indústria alimentícia e especialistas em saúde para cortar gradualmente a quantidade de sódio nos produtos, adaptando o paladar da população a uma dieta menos salgada. Oficialmente ainda não foi determinado o limite de sal nos produtos.

Numa tarefa complicada, o FDA vai analisar a quantidade em molhos de macarrão, pães e milhares de outros alimentos de um mercado de US$ 600 bilhões de comidas e bebidas. A decisão sobre limites será aberta à consulta pública.

— Este é um programa de dez anos — disse uma fonte do órgão, que comentou na condição de anonimato. - Estamos falando de uma abrangente fase de redução de um ingrediente amplamente usado. Nós estamos falando em modificar o paladar de uma geração.

O FDA — que regula a maioria dos alimentos processados — se juntaria nesse esforço ao Departamento de Agricultura, que fiscaliza carnes e aves. Atualmente, pelas leis federais, os fabricantes podem adicionar a quantidade de sal que eles quiserem.

Eles são apenas obrigados a informar a quantidade nos rótulos nutricionais. Mas, nos últimos 30 anos, as autoridades de saúde têm se mostrado muito preocupadas com o aumento do consumo de sal em produtos processados e em restaurantes.

Consumir o tempero em excesso pode elevar a pressão sanguínea, o que aumenta o risco de acidente vascular cerebral (derrame), doenças cardíacas e renais.

— Durante 40 anos temos visto a relação entre sódio e o surgimento de hipertensão e outras doenças que podem causar risco de vida. Mas não tivemos êxito em reduzir o sal em nossas dietas — disse Jane Henney, da Escola de Medicina da Universidade de Cincinnati, em Ohio, que presidiu o painel do Instituto de Medicina. — A melhor forma de conseguir isso é criar regras claras.

Os especialistas entendem que a indústria de alimentos deve realizar este processo passo a passo porque, de outra forma, ela poderá perder clientes pouco acostumados a mudanças no sabor dos alimentos.

— Já estamos trabalhando nisso voluntariamente — disse Melissa Musiker, gerente sênior de política de ciência, nutrição e saúde da Associação de Produtos Comestíveis.

Nos últimos meses, diversas empresas anunciaram que iriam reduzir o sódio em muitos de seus produtos. A Pepsico desenvolveu uma nova forma de cristais de cloreto de sódio que poderá reduzir o sal em 25% em suas batatas fritas Lay’s Classic.

Corte de 1 grama por dia é sugerido

Os produtores de sal reclamam.

— Seria um desastre para o público — afirmou Morton Satin, diretor do Instituto do Sal, que representa a indústria do setor. Ele acrescentou que a ciência a respeito do sódio não é clara e que o seu consumo não necessariamente leva a problemas de saúde. Porém, estudo recente realizado por pesquisadores das universidades de Columbia e Stanford descobriu que o corte de até 3 gramas de sal por dia pode prevenir dezenas de milhares de ataques cardíacos e derrames cerebrais. A redução de 1 grama levaria o consumo diário a níveis saudáveis, segundo especialistas.

terça-feira, 16 de março de 2010

Stédile revela que o Incra é informante do MST – Claudio Humberto – 16/03/2010

 

Em reunião com jornalistas governistas para criar uma “rede contra a criminalização de movimentos sociais”, João Pedro Stédile fez uma revelação estarrecedora: o Incra informa o MST sobre os alvos de suas invasões. Ele admitiu que foi um erro invadir a fazenda do grupo Cutrale, em São Paulo, mas culpou o Incra por haver “repassado” ao MST uma informação errada: que a fazenda seria área pública.

Afanou por quê?

João Pedro Stédile só não explicou por que, além de destruir a plantação de laranjas, seus delinqüentes afanaram bens da Cutrale.

Cumplicidade

Órgão do governo federal, o Incra deveria atuar como mediador de conflitos agrários. É a primeira vez que o MST confirma a “parceria”.

quinta-feira, 11 de março de 2010

'É um insulto que não vamos perdoar jamais', diz dissidente que organizou carta dos presos políticos de Cuba a Lula

Publicada em 10/03/2010 às 23h39m

Cristina Azevedo

RIO - Ao organizar a carta dos presos políticos cubanos ao presidente Lula, Oscar Espinosa Chepe esperava conseguir a mediação do Brasil para a libertação de Orlando Zapata e de outros dissidentes em grave estado de saúde. Ontem, em entrevista ao GLOBO, de Havana, ele reagiu com um misto de indignação e decepção à declaração em que Lula comparou prisioneiros políticos em greve de fome a presos comuns. Preso em 1957 por participar do movimento contra Fulgencio Batista, Espinosa foi diplomata e economista do governo para depois passar à dissidência. Em março de 2003, se tornou um dos 75 opositores presos na Primavera Negra e está em liberdade vigiada por problemas de saúde.

O presidente Lula perguntou o que aconteceria se todos os criminosos presos em São Paulo fizessem greve de fome pedindo a liberdade. Como o senhor recebeu essa declaração?

OSCAR ESPINOSA CHEPE: O presidente Lula me decepciona totalmente. Eu sentia simpatia por ele, por ser um homem popular, um sindicalista. Comparar criminosos com lutadores pacíficos pela democracia, pessoas classificadas pela Anistia Internacional como presos de consciência, é terrível. Sua atitude débil, frouxa, em relação à Venezuela já era preocupante. E também em relação ao Irã. Ele visitou Cuba com interesses econômicos, porque o porto de Mariel tem uma posição estratégica em relação aos EUA. Lula caminha direto ao oportunismo e ao populismo. Nós contávamos com ele. Todos os democratas estão tristes porque perdemos uma figura que pensávamos que seria útil ao mundo. Lamento por nós e pelo mundo.

Ele disse que não recebeu a carta pedindo a intercessão do Brasil por Orlando Zapata...

ESPINOSA: Nós enviamos a carta. Primeiro ligamos para a embaixada pedindo uma entrevista com o embaixador ou outra pessoa que pudesse nos receber. Mas a secretária disse que a política da embaixada era não receber ninguém. Então, enviamos a carta para o e-mail do protocolo oficial da embaixada. Não podem alegar que não receberam. A carta era respeitosa, tínhamos simpatia por Lula. A maioria dos presos o via como sincero e democrata. Comparar-nos com delinquentes e assassinos?! Eu era diplomata. Podia ter ficado calado e continuado a viajar o mundo. Meus companheiros sofrem na prisão. Isso é um insulto que não vamos perdoar jamais. Não somos delinquentes. Somos patriotas. Fizemos muito mais do que ele. Lula não é o Brasil. O Brasil é muito maior do que Lula.

O senhor teme novas mortes na prisão? Quantos presos políticos estão doentes?

ESPINOSA: Todos têm problemas de saúde depois de sete anos de má alimentação, água contaminada, má atenção médica e falta de condições de higiene. Há 26 em estado muito ruim.

O senhor teme uma nova onda repressiva?

ESPINOSA: É possível, porque o governo está numa situação muito difícil: o descontentamento está crescendo e ele perdeu capital político. E o único recurso que tem é a força. Mesmo dentro do Partido Comunista, há pessoas pedindo reformas. Na prática, está sendo criada uma frente contra o totalitarismo. E o instrumento do totalitarismo é a força.

Entidades de direitos humanos criticam declarações de Lula sobre presos cubanos; dissidentes se dizem decepcionados

Publicada em 10/03/2010 às 23h32m

Ângela Góes, Christine Lages, Eliane Oliveira, Luisa Guedes e Mariana Timóteo

Em Havana, dissidente cubano Felix Bonne anuncia que entrará em greve de fome caso Guillermo Fariñas morra - ele está sem comer há 13 dias / AFP

RIO e BRASÍLIA - Dissidentes do regime cubano e entidades de defesa dos direitos humanos reagiram com espanto e revolta às declarações dadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na segunda-feira defendendo o sistema judicial cubano e comparando presos políticos a bandidos comuns . Em entrevista à agência de notícias AP, Lula defendeu a soberania do governo e criticou os presos políticos que entraram em greve de fome no país, um dos quais acabou morrendo.

- Nenhum outro estadista da América Latina nem da Europa foi capaz de fazer declarações como essas. Logo Lula, um ex-líder operário, um ex-perseguido político, que visita constantemente nosso país - disse por telefone ao GLOBO o porta-voz da Comissão de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (CCDHRN), Elizardo Sanchez.

Ele se disse surpreso com o grau de cumplicidade ao qual o presidente do Brasil chegou com o regime totalitário dos irmãos Castro, ao ponto de "faltar com o respeito e ofender o movimento de direitos humanos e pró-democracia de Cuba".

Manuel Cuesta Morúa, da organização Arco Progressista, disse que declarações como as do presidente só deixam os dissidentes cubanos mais isolados. Segundo ele, como chefe de Estado, Lula cumpre o seu papel de manter boas relações com o governo de Cuba.

- Mas ele poderia ouvir os dois lados, para ter uma ideia melhor do que acontece aqui. Chamamos Lula para o diálogo, enviamos cartas para ele, e ele nos ignora, acho isso uma atitude equivocada e que não condiz com seu papel de principal líder da América Latina. Um grande líder não vira as costas para violações aos direitos humanos como as que sofremos atualmente em Cuba.

O dissidente cubano Guillermo "Coco" Fariñas, que iniciou uma greve de fome no dia 24 de fevereiro para protestar contra a morte de Orlando Zapata, não pôde comentar as declarações de Lula.

- Guillermo está a par das declarações do líder brasileiro, mas está muito fraco para dar entrevistas. - disse ao site do GLOBO, por telefone, Liset Zamora, porta-voz do psicólogo e jornalista.

Segundo ela, depois de 13 dias sem se alimentar, Fariñas está desidratado e com taquicardia.

- Não nos causa estranhamento que Lula compare presos políticos a bandidos comuns. Ele é um presidente que responde aos interesses do governo cubano - afirmou Liset. - Lula é cúmplice de Raúl e Fidel Castro.

Entidades preocupadas

Decepção e preocupação. Assim Nik Steinberg, pesquisador do Human Rights Watch, traduziu o sentimento da ONG americana que faz pesquisa e advoga no campo dos direitos humanos após as declarações polêmicas do presidente Lula. Em entrevista por telefone ao site do GLOBO, ele foi além e disse que o brasileiro perdeu uma excelente oportunidade de exercer influência na região.

- É muito decepcionante que o presidente Lula tenha comparado esses presos políticos a bandidos. Nós estamos falando de pessoas que foram impedidas de exercer seus direitos básicos de expressar suas opiniões - disse ele, que passou duas semanas em Cuba no ano passado realizando entrevistas para elaborar um relatório, publicado pela organização em novembro.

Segundo o documento, o tratamento recebido pelos presos em Cuba é "cruel, desumano e degradante".

- Os presos políticos têm rotineiramente acesso negado a tratamento de saúde como punição por suas atividades anteriores fora da prisão ou por expressar sua opinião do lado de dentro - acrescentou.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, foi duro e classificou as declarações de Lula como "uma comparação despropositada".

"A comparação é despropositada, pois tenta banalizar um recurso extremo que é, ao mesmo tempo, um símbolo de resistência a um regime autoritário que não admite contestações", afirmou Ophir, em nota, acrescentando que "mais razoável seria se o governo brasileiro se preocupasse com as péssimas condições carcerárias a que estão submetidos" os presos brasileiros.

Javier Zuniga, diretor da Anistia Internacional para a América Latina, entidade de defesa dos direitos humanos, comentou que a afirmação de Lula pode ter sido feito por desconhecimento do presidente acerca da situação carcerária em Cuba.

- Acompanhamos a situação dos dissidentes em Cuba há anos. Acreditamos que o presidente Lula tem informações equivocadas e estamos prontos para informá-lo sobre os prisioneiros. Temos alguns documentos que mostram o motivo pelo qual essas pessoas estão presas, e o que acreditamos ser prisioneiros de consciência - disse.

A presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Cecilia Coimbra, classificou a posição de Lula como "extremamente infeliz", e afirmou que o presidente se contradiz ao defender o governo cubano ao mesmo tempo em que prega a política de não intervenção e respeito às decisões de outros países.

- Quando ele critica a greve de fome (como instrumento político) e defende as decisões do governo cubano sobre o assunto ele está, sim, se metendo. Está defendendo um país que está longe de ser uma democracia e um governo que precisa ser questionado - afirmou, lembrando que, durante a ditadura brasileira, os desaparecidos políticos também eram chamados de bandidos.

O fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, Jair Krischke, afirmou que comportamento de Lula em relação aos direitos humanos ao longo de seu governo foi desastroso e criticou a posição do presidente.

- Lula, ou quem o assessora, não teve cautela. É uma declaração absurda. Não há nenhuma razão de Estado forte o suficiente para justificar qualquer tipo de violação aos direitos humanos - disse Krischke. - Ditadura é ditadura, não importa se de esquerda ou direita. Temos o dever de denunciar. E no caso de Lula, ele não só não denunciou, como tentou justificar o injustificável - declarou.

'Isso erode o capital de prestígio político de Lula', diz titular de Relações Internacionais da UnB

Catarina Alencastro - Publicada em 10/03/2010 às 23h39m

BRASÍLIA - As declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a uma agência de notícias internacional, comparando o dissidente cubano que morreu após 85 dias de greve de fome, Orlando Zapata Tamayo, a bandidos comuns foram desastrosas e minam o prestígio que o presidente e o país acumularam nos últimos anos. Esta é a avaliação do professor titular de Relações Internacionais da UnB Eduardo Viola.

Como o senhor avalia o posicionamento do presidente Lula com relação ao dissidente morto em Cuba?

EDUARDO VIOLA: É terrivelmente negativa a declaração de Lula. Erode o capital de prestígio ganho pelo Brasil e por Lula nestes últimos anos. Não é apenas um descuido, mostra uma atitude muito preocupante em relação à insensibilidade ao desrespeito pelos direitos humanos. Cuba é uma ditadura clara há 50 anos, com características dinásticas de reter o poder na mesma família.

E a comparação que o presidente fez entre o dissidente cubano e bandidos comuns de São Paulo?

VIOLA: É vergonhoso comparar um bandido comum a um prisioneiro de consciência. Um bandido comum é alguém que se supõe ter feito muito mal à sociedade, que é o oposto do prisioneiro de consciência, que está justamente lutando para melhorar a sociedade em que vive.

Preocupa essa declaração do presidente?

VIOLA: Isso mostra que nos últimos tempos Lula tem retomado um discurso mais autoritário, que era típico do PT antes de assumir o poder, em 2003. O Plano Nacional dos Direitos Humanos, as críticas frequentes à mídia são outros exemplos. Há um componente autoritário em Lula. Ele está testando a reação da sociedade brasileira. O apoio que o Brasil dá à ditadura cubana, essa comparação foi um desastre.

O senhor acha que o presidente Lula pode estar querendo passar um recado?

VIOLA: Esse movimento procura captar os setores mais radicais para que votem em Dilma. Por um lado, setores extremistas que talvez cogitassem votar em branco podem gostar disso. Mas esses são setores minoritários. É um cálculo arriscado de Lula.

O senhor vê um componente eleitoral nesse posicionamento, então?

VIOLA: Lula tem em seu interior um componente autoritário em sua personalidade. Quando se tem alta popularidade isso é perigoso. O próprio uso da máquina pública para eleger Dilma é uma demonstração de autoritarismo. Ele está usando a máquina estatal maciçamente para eleger uma pessoa totalmente subordinada a ele, com o objetivo de voltar depois (ao poder). Isso é preocupante.

A posição do líder brasileiro pode reforçar a perseguição ao regime cubano naquele país?

VIOLA: Isso causa muita decepção, embora tenha muito pouco impacto sobre os dissidentes cubanos. A ditadura cubana funciona independentemente do resto do mundo. Eles são muito insensíveis ao que acontece fora da ilha.

Na entrevista à agência AP, Lula diz que é preciso respeitar a Justiça cubana. Como essa chancela é recebida internacionalmente?

VIOLA: O Brasil é a única grande democracia do mundo que legitima a ditadura cubana. O mesmo aconteceu quando Lula decidiu apoiar o Irã. Mina o prestígio conquistado pelo Brasil.

domingo, 7 de março de 2010

Cleptocracia com vista para o mar Investigado por corrupção nos EUA, ditador da Guiné Equatorial negocia cobertura triplex em Ipanema

José Casado – O Globo – 7 de março de 2010.

Avenida Vieira Souto, 206. Este será o endereço da família Obiang no Rio, se concretizada a compra de um apartamento triplex em prédio de cinco andares projetado por Oscar Niemeyer há meio século: são dois mil metros quadrados de área útil, com rampa entre a sala de 720 metros e o pátio da cobertura, em ângulo com o magnético mar de Ipanema.

Os Obiang costumam se destacar nas listas das famílias mais ricas do planeta, como as da revista “Forbes”.

Há três décadas detêm a hegemonia do poder e dos negócios na Guiné Equatorial, país do tamanho de Alagoas, onde 520 mil pessoas vivem em cima de um oceano de petróleo espraiado pelo Golfo da Guiné —o braço do Atlântico que invade a África, na região conhecida como coração geográfico da Terra, porque ali se cruzam as linhas do Equador (0º de latitude) e do meridiano de Greenwich (0º de longitude).

O negócio imobiliário no Rio, estimado em US$ 10 milhões, é apenas reflexo das prósperas relações do clã Obiang com o governo, a Petrobras e empreiteiras brasileiras. A Petrobras tem 50% de um campo petrolífero em exploração. Já a Andrade Gutierrez — dona do apartamento em Ipanema — soma US$ 500 milhões em contratos. Outra construtora mineira, a ARG, obtém naquele país 40% da sua receita anual (US$ 155 milhões em 2008).

O comércio entre o Brasil e a Guiné Equatorial aumentou cem vezes nos últimos seis anos: saltou de US$ 3 milhões em 2003 para US$ 300 milhões em 2009. Nos últimos seis meses, dois ministros brasileiros (o chanceler Celso Amorim e Miguel Jorge, da Indústria e Comércio) viajaram à capital, Malabo, para negociar uma dezena de novos acordos.

Governantes ricos, população miserável

A Guiné Equatorial é um fenômeno africano. Por causa do bilhão de barris de petróleo extraído anualmente, exibe uma das maiores rendas per capita do mundo (US$ 28 mil por habitante) — quase quatro vezes maior que a do Brasil, superior à de Israel e Coreia do Sul, informa o Banco Mundial. Essa riqueza contrasta com o real padrão de vida da população: quase oito de cada dez habitantes sobrevivem com renda pouco acima de US$ 1 por dia, apenas 44% da população têm acesso à água potável, e a desnutrição impera entre 39% das crianças com menos de 5 anos.

Há quatro semanas, o Senado dos EUA encerrou uma investigação sobre o destino da riqueza da Guiné Equatorial.
No relatório final, com 330 páginas, o clã Obiang emerge como uma vigorosa cleptocracia, elevada à categoria de “caso de estudo” sobre práticas de corrupção governamental.

A comissão, coordenada pelos senadores Carl Levin (democrata) e Tom Corbun (republicano), considera “muito suspeito” o processo de “acumulação de riqueza substancial” dos Obiang, ressaltando evidências de “atos de corrupção”. Mostra em detalhes como “a família real de um país flagelado pela corrupção” (Guiné Equatorial) subtrai o Tesouro local em sucessivas operações de lavagem de dinheiro, com a colaboração de empresas petrolíferas dos EUA (responsáveis por 75% da extração de petróleo), bancos americanos, europeus e latinos.

O chefe do clã é o ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo.

Entre 1998 e 2004, ele e a família acumularam US$ 700 milhões em apenas uma (Riggs Bank) das nove instituições financeiras dos EUA investigadas pelo Senado. Isso representa quatro vezes e meia o valor estimado do patrimônio imobiliário da rainha Elizabeth II, da Inglaterra.
Obiang é um militar de 68 anos, educado em quartéis da Espanha franquista, cuja rotina se divide entre o tratamento de um câncer de próstata e a atenção à luta fratricida pela sucessão no trono do “Supremo”.

Ironia da História: a última disputa na família acabou em 1979, quando Obiang liderou um golpe, prendeu e mandou fuzilar o tio, o ditador Francisco Macías Nguema. Primeiro presidente pós-independência da Espanha, Macías foi um déspota tão delirante quanto violento: atribuiu-se o título de Milagre Único, proibiu a pronúncia e a impressão da palavra “intelectual” e comandou o assassinato de pelo menos 50 mil pessoas (um sexto da população na época).

O tio nunca admitiu eleições. O sobrinho Obiang já investiu em cinco — declarou-se vencedor em todas, com pelo menos 95% dos votos válidos. Sobreviventes da oposição estão no presídio de Praia Negra, na capital, onde a tortura é tão endêmica quanto as parasitoses, relatam a Anistia Internacional e a Human Rights Watch.

Até agora, o favorito na sucessão é Teodorín, filho mais velho de Obiang.

Aos 39 anos de idade, é um caso singular de playboy milionário que vagueia por aeroportos com passaporte diplomático de ministro da Agricultura e Florestas da Guiné Equatorial.

O Brasil tem sido um de seus destinos frequentes, a bordo de um jatinho Gulfstream 487, de 16 lugares, pelo qual pagou US$ 38,5 milhões “com dinheiro de origem suspeita”, ressalta o Senado americano.

Teodorín é investigado por corrupção e lavagem de dinheiro nos EUA, França e Espanha. Entre 2004 e 2008, ele movimentou “mais de US$ 110 milhões em fundos suspeitos nos EUA”, segundo o Senado.

A folia de gastos do playboy-ministro contrasta com a miséria exuberante de seu país, onde diarreia, sarampo e pneumonia ainda levam à morte 55% das crianças com menos de 5 anos de vida.

Teodorín tem como fonte de renda oficial um modesto salário ministerial de US$ 5 mil mensais, mas pagou à vista US$ 30 milhões por uma mansão californiana frente ao mar de Malibu (3620 Sweetwater, Mesa Road), na vizinhança do ator Mel Gibson, da cantora Britney Spears e do cineasta James Cameron (“Titanic” e “Avatar”).

O imóvel tem 48,5 mil metros quadrados — área equivalente a 15% de Ipanema. A decoração custou US$ 4 milhões. A despesa com a manutenção do tanque de carpas imperiais é de US$ 7.400 ao mês. Ele se tornou um tipo inesquecível para o corretor Neal Baddin, de Hollywood Hills: pagou uma comissão de US$ 615 mil, e ainda comprou os recibos.

Fez um seguro de US$ 9,5 milhões para a frota de 32 veículos, entre eles sete Ferrari, cinco Bentley, quatro Rolls Royce, duas Lamborghini, dois Maybach, duas Mercedes, dois Porsche, um AstonMartin, e um Bugatti.

Mais tarde, levou seu advogado, Michael Berger, para comemorar na Mansão Playboy: “Tive momentos maravilhosos. Eu conheci muitas mulheres bonitas, e tenho as fotos, e-mails e telefones” — escreveulhe Berger, agradecido, em um dos e-mails confiscados pela comissão de investigação.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

'Lula deveria protestar, porque trata-se de valores universais que ele defende', diz dissidente cubano

Cristina Azevedo – O Globo – 25 de fevereiro de 2010

RIO - Secretário-geral do Partido Arco Progressista e integrante do Comitê pela Cidadania Inter-racial, Manuel Cuesta acredita que o fato de Orlando Zapata Tamayo ser negro influiu nos maus-tratos e no tratamento médico precário que recebia na prisão. De Havana, ele conta por telefone que a vigilância aos dissidentes aumentou por temor a manifestações, e protesta: "Cuba é o único país da região em que um preso, seja de consciência ou comum, morre por fazer greve de fome."

Como está a situação em Cuba após a morte de Orlando Zapata Tamayo?

MANUEL CUESTA: Alguns amigos tentaram viajar até Holguín, onde a família dele mora, mas foram detidos e forçados a retornar. Outros foram impedidos de sair de casa em províncias como Cárdena. Aqui em Havana, notamos que os dissidentes estão sob vigilância da polícia política.

A mãe de Zapata disse que ele foi torturado na prisão. O que houve com ele?

CUESTA: Ele apanhou muito porque era um prisioneiro rebelde. Aqui os presos não podem protestar. Uma vez teve que ser operado devido aos golpes que sofreu no centro carcerário de Holguín. Além disso, enfrentou uma condição muito difícil nas prisões. Um local para 30 pessoas abriga 80, 100. A alimentação está sendo difícil para todos os cubanos, imagine para os presos. Eles não recebem assistência médica adequada. O governo não deixa que organismos internacionais visitem as prisões, e por isso é difícil que as penitenciárias recebam assistência de agências humanitárias. O governo não reconhece os presos políticos. Para ele, são mercenários a serviço dos EUA.

Como vê a declaração de Raúl Castro?

CUESTA: Raúl Castro lamentou a morte de Zapata, mas a classificou como o resultado do conflito com os Estados Unidos. Nós, cubanos que temos opiniões diferentes, estamos na zona de perigo. Lula deveria ter protestado. Estamos falando de valores universais, que o governo Lula defende muito bem. Essa é uma boa ocasião para se manifestar publicamente contra o governo cubano, sobretudo pela importância que isso tem para a América Latina. Cuba é o único país da região em que um preso, seja de consciência ou comum, morre por fazer greve de fome, ao pedir melhores condições. Num momento em que a América Latina discute a sua unidade, deveria se preocupar para evitar que situações como essa cheguem a extremos. Se ainda havia alguma dúvida de que a luta por direitos humanos em Cuba era legítima, essa dúvida não existe mais.

O fato de Zapata ser negro teve alguma relação com os maus-tratos sofridos na prisão?

CUESTA: Evidentemente. Um intelectual já disse que os negros em Cuba sofrem a dor e a sobredor. Historicamente, em Cuba, quando negros e mestiços protestam, são mais reprimidos. A raça vai marcá-los. Deveria ser o contrário, mas não é. O que aconteceu com Zapata, acontece com outros. Se ele tivesse um foco maior interno e internacional, sua morte poderia ter sido evitada.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O terceiro Chávez - Demétrio Magnoli, O Globo, 4/2/2010

Karl Marx criou a 1ª Internacional, Friedrich Engels participou da fundação da 2ª, Lenin estabeleceu a 3ª, Leon Trotski fundou a 4ª e Hugo Chávez acaba de erguer o estandarte da 5ª. "Eu assumo a responsabilidade perante o mundo; penso que é tempo de reunir a 5ª Internacional e ouso fazer o chamado", declarou num discurso de cinco horas, na sessão inaugural do congresso extraordinário do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), sob aplausos de 772 delegados em camisetas vermelhas.

O congresso ocorreu em novembro. Depois, Chávez impôs o racionamento energético no país, desvalorizou a moeda e implantou um câmbio duplo, estatizou uma rede de supermercados, suspendeu emissoras de TV a cabo e desencadeou sangrenta repressão contra os protestos estudantis. A Internacional chavista nascerá numa conferência mundial em Caracas, em abril, e as eleições parlamentares venezuelanas estão marcadas para setembro. Mas o futuro do homem que pretende suceder a Marx, Lenin e Trotski será moldado por um evento totalmente estranho à sua influência: a eleição presidencial brasileira de outubro.

Chávez vive a sua terceira encarnação, que é também a última. O primeiro Chávez emergiu depois do golpe frustrado de 1992, nas roupagens do caudilho nacionalista e antiamericano hipnotizado pela imagem de um Simón Bolívar imaginário. Sob a influência do sociólogo argentino Norberto Ceresole, aquele chavismo original flertava com o antissemitismo e sonhava com a implantação de um Estado autoritário, de corte fascista, que reunificaria Venezuela, Colômbia e Equador numa Grã-Colômbia restaurada.

Um segundo Chávez delineou-se na primavera do primeiro mandato, em 1999, a partir da ruptura com Ceresole e da aproximação do caudilho com o alemão Heinz Dieterich, o professor de Sociologia no México que deixou a obscuridade ao formular o conceito do "socialismo do século 21". O chavismo reinventado adquiriu colorações esquerdistas, firmou uma aliança com Cuba e engajou-se no projeto de edificação de um capitalismo de Estado que figuraria como longa transição rumo a um socialismo não maculado pela herança soviética.

Brandindo um exemplar de O Estado e a Revolução, de Lenin, o Chávez do congresso extraordinário do PSUV anunciou sua conversão ao programa de destruição do "Estado burguês" e construção de um "Estado revolucionário". Este terceiro Chávez se insinuou em 2004, quando o caudilho conheceu o trotskista britânico Alan Woods, e se configurou plenamente no momento da derrota no referendo de dezembro de 2007, pouco depois da ruptura com Dieterich. O PSUV é fruto do chavismo de terceira água, assim como a proclamação da 5ª Internacional.

O termo palimpsesto origina-se das palavras gregas palin (de novo) e psao (raspar ou borrar). Palimpsesto é o manuscrito reescrito várias vezes, pela superposição de camadas sucessivas de texto, no qual as camadas antigas não desaparecem por completo e mantêm relações complexas com a escritura mais recente. Para horror do sofisticado Woods, o chavismo é uma doutrina de palimpsesto que mescla de maneiras bizarras a Pátria Grande bolivariana, a aliança estratégica com o Irã, os impulsos bárbaros do caudilhismo e o difícil aprendizado da linguagem do marxismo. O texto mais novo, contudo, tem precedência sobre os antigos e indica o rumo da "revolução bolivariana". Chávez reage à crise provocada por seu próprio regime apertando os parafusos da ditadura e lançando-se desenfreadamente às expropriações.

O chavismo é um regime revolucionário, não um governo populista tradicional nem um mero fenômeno caudilhesco. O PSUV tem, no papel, 7 milhões de filiados, dos quais 2,5 milhões se apresentaram para eleger os delegados ao congresso extraordinário. O declínio de Chávez, agravado pela crise econômica em curso, sustenta a profecia de sua derrota eleitoral em setembro, mas regimes revolucionários não são apeados do poder pelo voto. "Não admitirei que minha liderança seja contestada, porque eu sou o povo, caramba!", rugiu semanas atrás o caudilho de Caracas. Esse homem não permitirá que o povo o desminta nas urnas. O ocaso inexorável do chavismo será amargo, dramático, talvez cruento. Mas sua duração dependerá, essencialmente, do sentido da política externa do novo governo brasileiro.

Várias vezes o Brasil estendeu uma rede sob Chávez. Lula e Celso Amorim protegeram o venezuelano na hora do fechamento da RCTV, no referendo constitucional frustrado, na crise dos reféns colombianos, na polêmica sobre as bases americanas e na aventura fracassada do retorno de Zelaya a Honduras. Em nome dos interesses do chavismo, o presidente brasileiro desperdiçou a oferta de cooperação estratégica com Barack Obama.

No ciclo de estabilização da "revolução bolivariana", o Brasil isolou regionalmente a oposição venezuelana, ajudando a consolidar o regime de Chávez. Agora, iniciou-se o ciclo de desmontagem das bases políticas e sociais do chavismo. No novo cenário, o Brasil tornou-se imprescindível: só a potência sul-americana possui os meios e a influência para carregar por mais alguns quilômetros o esquife do iracundo caudilho.

A maioria governista no Senado aprovou o ingresso da Venezuela no Mercosul, sob o cínico argumento de que a democracia no país vizinho ficará mais preservada pela virtual supressão da cláusula democrática do Mercosul. Na OEA, a diplomacia brasileira manobra para evitar uma nítida condenação da ofensiva chavista contra os estudantes e a liberdade de imprensa. Em Caracas, uma missão técnica enviada pelo governo brasileiro articula um plano de resgate do sistema elétrico venezuelano em colapso. A declaração de apoio de Chávez à reeleição de Lula foi recebida com desprezo pelos chavistas revolucionários. Hoje, até Woods deve estar rezando em segredo pelo triunfo de Dilma Rousseff.