Dupla governante da Argentina multiplica fortuna, acossa críticos e fragiliza a democracia no país
José Casado – O Globo, 9 de maio de 2010.
BUENOS AIRES. Ex-presidente e marido de Cristina, atual presidente da República, ex-governador e deputado nacional, chefe do Partido Justicialista (peronista) — o maior do país — e pré-candidato à Presidência da Argentina na eleição de 2011. Desde a semana passada, Néstor Carlos Kirchner ostenta um outro distintivo: secretário-executivo da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), a nova instância da burocracia diplomática regional patrocinada pelo governo Lula. Aos 60 anos, Kirchner é um personagem singular da vida argentina não só pelo poder que concentra, mas também porque se tornou um dos políticos mais ricos do país. Desde que Néstor e Cristina entraram na Casa Rosada, sede do governo argentino, há 84 meses, o patrimônio do clã Kirchner aumentou sete vezes e meia.
Ele foi presidente de maio de 2003 a dezembro de 2007, elegeu a sucessora, e ela governa desde 2008. Quando Néstor assumiu a Presidência, em 2003, os Kirchner declararam possuir US$ 1,9 milhão em patrimônio líquido (soma dos bens e créditos, descontadas as dívidas). Em março passado informaram ao fisco que sua riqueza crescera para US$ 14,2 milhões. Essa fortuna, registrada no Escritório Anticorrupção e na Câmara dos Deputados, foi multiplicada pelos Kirchner em velocidade recorde.
Inflação anual estaria em 31%
Embalados no célere enriquecimento e enlevados na supremacia política, os Kirchner acabaram prisioneiros no labirinto que eles mesmos construíram nos últimos sete anos com uma única porta de saída: a autocracia.
O resultado é um impasse institucional, confrontos do governo com o Congresso e o Judiciário, e a degradação cotidiana da democracia argentina.
Às evidências de descontrole da economia somou-se uma sucessão de escândalos de corrupção no governo (o mais recente é o da suposta cobrança de propinas no comércio com a Venezuela), que já asfixia a administração de Cristina.
Para o casal governante, o preço dessa “revolução” pela crise permanente tende a ser alto e foi sinalizado em uma derrota em eleições legislativas no ano passado, que semeou incertezas sobre a viabilidade da candidatura de Néstor Kirchner à Presidência no próximo ano. Mas o custo econômico é crescente para um país que mantém um terço da população na pobreza e 10% na indigência.
A inflação anual, medida por instituições privadas, saltou de 9,8% (maio de 2009) para 31% (abril de 2010). E cresce a procura por moeda forte: no centro de Buenos Aires, lojas caçam consumidores com dólares e euros oferecendo-lhes cotação até 20% acima da anunciada por bancos e casas de câmbio.
A intolerância domina os debates
Entidades e milícias patrocinadas pelo governo adotaram a rotina de escrachar “inimigos” — políticos, sindicalistas e personalidades não alinhadas, juízes autores de sentenças contrárias às decisões oficiais e jornalistas habitualmente críticos. Cooptados nos orçamentos ministeriais, líderes ativistas como Hebe de Bonafini, das Mães da Praça de Maio — célebres pelo pacifismo contra a ditadura militar — se dizem “instrumento” do kirchnerismo e promovem cerimônias medievalistas de “julgamentos” dos críticos do governo em praças públicas.
Bonafini, agora dona de rádio e vinculada a polêmicos programas estatais de crédito, comandou um “tribunal popular” contra jornalistas na semana passada. Vai dedicar o próximo aos juízes dos processos sobre corrupção governamental. Livros de análise política agora são percebidos como armas na Argentina dos Kirchner.
O país vive um “boom” da chamada literatura de não-ficção, como demonstra a Feira de Livros de Buenos Aires, que termina amanhã. Mas, ali, alguns dos lançamentos de obras que desagradaram à Casa Rosada foram abortados a cadeiradas por milícias governistas.
Época turva, constata o escritor Santiago Kovadlof, para quem o governo manobra com o medo, à procura de pretextos para a “decolagem da autocracia”:
- Hoje, a Argentina vive o medo da interpretação, porque ela pressupõe a polêmica.
Tenta-se impor a homogeneidade na análise política, ele observa:
— E esse “asseio” na linguagem da política, inevitavelmente, nos remete aos princípios de “pureza” do nacional-socialismo.