sábado, 4 de abril de 2009

"O índio sou eu"

O líder da oposição boliviana diz que o presidente
Evo Morales é um indígena de fachada e que seu
governo incentiva um racismo às avessas,
contra os não índios

Duda Teixeira

Martins Alipaz/EFE

"Sou aimará, respeito minhas tradições, mas não posso permitir açoitamentos em praça pública"

Vice-presidente da Bolívia no primeiro governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, nos anos 90, o professor universitário Víctor Hugo Cárdenas desempenhou papel decisivo na introdução da educação bilíngue nas escolas, que passaram a ensinar tanto o espanhol quanto as línguas indígenas. Aimará nascido em um vilarejo à beira do Lago Titicaca, Cárdenas foi um dos porta-vozes da campanha pela rejeição do projeto de Constituição do presidente Evo Morales. Hoje ele está entre os nomes da oposição com melhores chances para as eleições presidenciais de dezembro. O texto constitucional, que acabou aprovado em referendo em janeiro, dá a 36 etnias indígenas autonomia judiciária para julgar e punir segundo as leis tribais. Cárdenas foi um dos primeiros a sofrer a arbitrariedade dos caciques. No início de março, sua casa no Lago Titicaca foi saqueada por indígenas partidários de Morales. Sua mulher, seus filhos e outros parentes foram golpeados com paus e chicotes. Aos 57 anos, de La Paz, Cárdenas deu a seguinte entrevista a VEJA.

Por que o senhor, um aimará, teve a casa invadida e familiares espancados por um grupo de índios?
Essa ação não foi perpetrada por pessoas de minha comunidade aimará, mas por ativistas do partido do presidente Evo Morales, o Movimento para o Socialismo (MAS). Os principais instigadores da invasão da minha casa são quatro integrantes desse partido, assessorados por um ex-membro da Assembleia Constituinte da região de Oruro, que fica a 200 quilômetros daqui. Só um deles é de minha comunidade.

Por que eles tomaram essa atitude violenta?
Por trás da agressão está a mão negra do governo. Foi um ato de vingança, uma represália política para tentar calar minha voz. Nos últimos meses, participei de uma intensa mobilização contra a nova Constituição ao lado de profissionais liberais, estudantes e advogados. Visitei todos os estados bolivianos, dei entrevistas para a televisão e jornais. Apesar de não termos sido vitoriosos no referendo, diminuímos bastante o apoio ao governo. Então, eles planejaram essa retaliação.

Pessoas que invadiram sua casa e atacaram sua família alegaram que estavam em área indígena e agiam segundo a nova Constituição...
Nenhuma reunião de camponeses ou de indígenas pode tomar decisões que não respeitem os direitos fundamentais dos cidadãos bolivianos. No meu caso, essa "justiça comunitária" foi usada como pretexto para atacar minha família. A nova Constituição fragmentou a Justiça comum com a criação de 36 sistemas judiciais indígenas, nos quais não haverá direito de apelação. Mas esses tribunais não podem funcionar ainda, pois é necessário que sejam promulgadas leis para regulamentá-los. Apesar disso, algumas pessoas atuam como se eles já estivessem em vigor.

O senhor pode ser considerado a primeira vítima da nova Constituição boliviana?
A primeira vítima foi a democracia, pois essa nova Carta criou uma dupla cidadania, em que uns têm mais direitos que outros. O MAS inaugurou um racismo ao revés, em que os indígenas leais ao partido ou moradores de área rural têm mais direitos que os outros. Com isso, eles ganham privilégios e são usados como massa de manobra. Pessoas que não são indígenas passaram a ser odiadas porque são consideradas perversas por natureza. A Constituição fala a todo momento de "nações e povos indígenas originários camponeses". São os índios que vivem no campo e somam 30% da população do país. Os outros 70% que estão nas cidades e são majoritariamente indígenas foram totalmente ignorados. Para o MAS, não há indígenas na cidade. Há uma razão para isso. Os índios rurais são menos informados e podem ser facilmente manipulados.

Como foi o ataque a sua esposa e a seus filhos?
Minha mulher, minha filha de 16 anos, meu filho de 24 e minha cunhada foram apedrejados e golpeados com paus e chicotes. No dia da tragédia, pela manhã, meu sobrinho de 24 anos foi reconhecido na rua, atacado com paus e chicoteado em praça pública. Fizeram isso com ele apenas porque era meu parente. Depois do ataque, minha família esteve hospitalizada por dez dias para tratar contusões e hematomas. Meu filho ficou muito machucado e está com uma hemorragia interna na região do olho esquerdo. Mas o pior dano é o psicológico. Minha filha é menor de idade, uma adolescente. Ela ainda tem dificuldade para dormir. De vez em quando, chora sozinha. Eu estava dando aulas em La Paz e não fui ferido.

A justiça indígena de que fala a Constituição inclui a adoção de castigos corporais, como o uso de chicotes?
As punições com chicotes ainda acontecem em várias comunidades indígenas na Bolívia, o que é lamentável. Por mais que seja indígena, essa prática não respeita os direitos humanos. Sou aimará, respeito minhas tradições, mas não posso permitir açoitamentos em praça pública.

As reuniões para decidir sobre a invasão de sua casa foram previamente anunciadas nos jornais. O que fez a polícia?
As autoridades não deram importância às denúncias e não atenderam minhas chamadas telefônicas horas antes da tragédia. Assim, a polícia não pôde agir a tempo. Naquele sábado, dia 7, o estado boliviano decidiu desproteger minha família. Nos dias seguintes, o governo nos encheu de insultos e declarações cúmplices com a violência desses assaltantes. O vice-presidente Álvaro García Linera afirmou que eu deveria me perguntar o que fiz de errado para merecer tal injustiça. O presidente Evo Morales disse que sou culpado pelo ocorrido por ter mudado meu sobrenome indígena.

Como assim?
Esse governo tenta desqualificar minhas credenciais indígenas, enquanto sustenta que Evo Morales é um índio. Nenhuma das coisas faz sentido. Nos anos 40, meu pai precisou trocar o sobrenome aimará, que era Choquehuanca, para Cárdenas porque queria estudar topografia. Naquela época, o racismo era muito forte e nenhum indígena podia cursar a educação superior. Nunca neguei minha identidade étnica. Em 1992, quando fiz campanha para a Vice-Presidência, falei desse fato publicamente. O curioso é que, assim como meu pai, que precisou mudar de sobrenome no passado, hoje eu também sou vítima de discriminação. Mas, desta vez, os racistas são os índios.

Evo Morales também é um aimará com nome espanhol, não é?
Apesar de ter pais indígenas, Morales nunca aprendeu sua língua materna, não viveu na comunidade nem pratica seus valores. Não vive no mundo aimará. Também é solteiro, o que para um indígena significa ser uma pessoa pela metade. Morales é apenas uma inteligente criação do marketing político, que foi muito bem aceita no exterior. Com muita artimanha, conseguiram converter um dirigente cocaleiro em um indígena. Proeza semelhante seria transformar o metalúrgico Lula em um jogador de futebol. Essa façanha midiática acabou por usurpar a onda de um crescente movimento indígena autêntico. Morales só adotou o discurso étnico na sua última campanha eleitoral. Graças a ele, temos dois indigenismos hoje na Bolívia. Um que usa os indígenas como força de choque contra opositores e outro que propõe uma democracia intercultural com menor desigualdade e sem injustiças.

Como é a vida em sua comunidade indígena?
Estamos a cerca de 90 quilômetros de La Paz, nas margens do Lago Titicaca. É uma região turística, onde vivem cerca de 100 famílias. A terra não é boa para a agricultura ou para o gado. Então, muitos foram viver nas cidades. Tornaram-se taxistas, comerciantes, carpinteiros ou professores, como eu. Nos fins de semana ou nos dias de festa, muitos retornam para encontrar parentes e celebrar as tradições. Falo aimará, aprendi um pouco de quíchua e estou estudando guarani.

O senhor diria que o espírito democrático, o respeito e a tolerância são característicos da comunidade aimará?
Posso dizer claramente que esses valores são cultivados pela minha comunidade. Mas os indivíduos podem se comportar de diferentes maneiras. Na Bolívia, o MAS criou a imagem de que os indígenas são pequenos anjos. Uma espécie de reserva moral e ética da humanidade. É uma visão etnocentrista, segundo a qual a cultura aimará é superior às outras. Isso é falso. Essa ideia desmoronou, com os múltiplos casos de corrupção e assassinatos que estremeceram o país. Muitos indígenas que entraram no governo se apropriaram inescrupulosamente dos recursos públicos. Um deles é Santos Ramírez, ex-presidente da companhia Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB). Foi preso quando se descobriu que ele estava para receber uma mala com 450 000 dólares. Ramírez era professor rural, fundador do MAS, e braço direito de Morales. É impossível que o presidente não soubesse de suas operações ilícitas. Qualquer instituição pública hoje está impregnada de corrupção.

É necessário defender o cultivo da folha de coca para usos tradicionais e medicinais, como faz Evo Morales no exterior?
Defendo o uso tradicional da folha de coca, em tratamentos medicinais e no chá. Para tais fins são necessários apenas 12 000 hectares de terra. Não mais. É o que está na lei. Esse governo quer ampliar a superfície de plantação de coca para 30 000 hectares. Isso não faria sentido porque o mercado tradicional está muito bem abastecido e não cresce tanto. O que provavelmente se quer é ampliar o cultivo para a produção de cocaína. São folhas diferentes. A que vai para o narcotráfico é maior e mais grossa. Não serve para o uso tradicional. É esse tipo que se encontra em 95% das terras do Chapare, região cocaleira de Morales. Ao defender a folha de coca e eliminar mecanismos de controle, o presidente dá espaço para que os narcotraficantes possam atuar com liberdade. São eles que se beneficiam quando o país mergulha no caos.

O Departamento de Estado americano parabenizou o povo boliviano pelo referendo que aprovou a nova Constituição. Lula afirmou que foi ato decisivo para refundar a democracia no país. O que o senhor acha desse apoio externo à Constituição?
Não conheço essas declarações. Do meu ponto de vista, o referendo não reuniu as mínimas condições de um evento democrático. Os artigos que a compõem mal foram discutidos. Quando a Constituição foi aprovada, primeiramente em um recinto militar fora de Sucre, apenas o índice foi lido. Na votação detalhada que ocorreu em Oruro, também não se discutiu artigo por artigo. Pesquisas de opinião mostraram que sete em cada dez bolivianos desconhecem o conteúdo do texto.

O regime democrático pode sobreviver a governantes como Evo Morales, Hugo Chávez e Rafael Correa?
Isso depende da decisão de nossos povos. Na Bolívia, iniciamos um movimento cidadão para salvar o país do autoritarismo centralizador e socialista que está sendo aplicado por um grupo de oportunistas. A situação está ficando insustentável. O governo de Morales agravou a divisão social, regional, cultural e ideológica do país. A pobreza piora porque se construiu uma blindagem da economia contra qualquer investimento nacional ou estrangeiro. Sem capital não se pode produzir riqueza para solucionar o desemprego, a fome, a baixa qualidade da educação ou a precariedade dos hospitais. Morales assumiu dizendo que não haveria um único morto por motivos políticos em seu governo. Quase cinquenta pessoas já morreram por questões políticas desde então. É muito difícil que um cenário assim se prolongue. Há um ditado popular que diz que "não há governo que dure 100 anos nem povo que o aguente".

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Exclusivo on-line
Os problemas da Constituição boliviana

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O militante perfeito

DEMÉTRIO MAGNOLI, O Globo, 2 de abril de 2009

Delúbio Soares, o famoso militante que quer retornar ao PT, é homem de Lula. Pelas mãos de Lula, ele chegou à direção da CUT e, pelas mesmas mãos, saltou da central sindical à tesouraria do partido. Depois que Lula entrou triunfante no Palácio do Planalto, Delúbio cumpriu duas missões sucessivas: operou o esquema do mensalão e, em seguida, imolou-se para salvar o núcleo duro da direção petista, enquanto José Dirceu sacrificavase na pira ardente da segurança presidencial. O seu pedido de reingresso no PT pode ser interpretado apenas como o gesto de alguém que almeja uma cadeira parlamentar a fim de cavar uma trincheira diante da ameaça posta pelos tribunais. Mesmo se assim for, Delúbio cumpre, agora inadvertidamente, uma terceira missão estratégica.

Lulismo e petismo são fenômenos distintos, porém entrelaçados. Lula é um político conservador, salvacionista, de rara sagacidade. No ocaso da ditadura, o suposto mago Golbery do Couto e Silva o imaginou como o agente da destruição da esquerda no Brasil. O PT é um fruto estranho, mas cheio de vitalidade, do encontro tríplice, no outono do socialismo soviético, entre a velha esquerda castrista, a militância católica da “igreja da libertação” e uma nova burocracia sindical.

Lula precisa do partido, enquanto não puder substituí-lo. O partido precisa do apelo popular e do simbolismo histórico de Lula.

O mensalão serviu a um propósito de Lula, muito mais que do PT: estabilizar a maioria governista no Congresso.

A denúncia do mensalão partiu de um contrariado Roberto Jefferson, presidente do PTB e confidente pessoal do presidente, a quem Lula entregaria, nas suas palavras célebres, “um cheque em branco”. Na hora do desastre, Jefferson protegeu Lula que, por sua vez, desviou traiçoeiramente o raio para a precária casamata do PT. Curiosidades abertas a especulações políticas ou tramas ficcionais: hoje, Jefferson continua a presidir o PTB, que segue firme na base lulista e conserva seus valiosos cargos no governo e em empresas estatais.

Lula sobreviveu à tempestade do mensalão graças às ações paralelas e desconectadas de José Dirceu e FHC.

A pátria do primeiro é o PT, como burocracia política poderosa, de alcance nacional e influência internacional.

Ele sabia que seu partido seria convertido num monte de ruínas se o presidente desabasse. A pátria do segundo é a ordem emanada da redemocratização.

Ele temia que as instituições cedessem sob o impacto de um segundo impeachment, agora contra o símbolo da elevação da classe trabalhadora ao papel de protagonista da história brasileira.

A pátria de Lula é Lula mesmo.

Anos antes de chegar à Presidência, ele declarou que o partido de seus sonhos não é o PT, mas uma agremiação mais ampla, obviamente organizada em torno de sua liderança. Fechado o capítulo do mensalão, ao alcançar o píncaro de seu prestígio, o presidente tentou moldar o futuro, articulando uma aliança com o PMDB e emitindo sinais de fumaça na direção de Aécio Neves, o governador de Minas Gerais que contesta a pré-candidatura de José Serra. Contudo, a utopia lulista parece ter alcançado um paredão intransponível. A rede do PMDB não inspira a confiança mínima para que Aécio se decida a empreender o triplo mortal carpado rumo aos braços do presidente. A burocracia e a base do PT rejeitam a hipótese de diluir o partido num “novo PMDB”, liderado por Lula e gerenciado por Aécio. A terceira missão de Delúbio se inscreve na teia desse impasse.

Dilma Rousseff, uma outsider no PT proveniente do brizolismo, representa um compromisso entre dois fracassos. Lula a impõe ao partido como peça de reposição de seu impossível candidato ideal, que abriria as portas do futuro partido lulista. A burocracia do PT a recebe apenas porque foi privada pelas crises recentes de seu próprio candidato ideal, que seria um representante da máquina partidária. Sem Dirceu, Palocci, Mercadante ou Marta, e excluindose um jamais domesticado Eduardo Suplicy, resta apenas a candidata de proveta do Planalto. Mas nem todo o aparato de propaganda governamental é capaz de subordinar por completo o partido ao edito imperial de Lula. Para isso, só mesmo o fator Delúbio.

“Reintegrar Delúbio será fornecer farta matéria-prima para os ataques da direita, ajudando a reavivar a ofensiva lançada contra nós durante a crise de 2005”, gritou um alarmado Valter Pomar. “Direita”, para o secretário de Relações Internacionais do PT, é qualquer cidadão indignado com a compra em massa de parlamentares operada por Delúbio. Mas, abstraindo-se a notória delinquência de linguagem, é inevitável admitir que ele expõe com nitidez o sentido da missão delubiana. O gesto do homem que personifica o mensalão desarma politicamente o PT, prostrandoo diante da vontade de Lula.

Nos próximos meses, o PT realizará seus encontros internos. Deles resultarão uma nova direção e a unção do candidato à Presidência. A intervenção de Delúbio funciona como prelúdio para o assalto de Lula ao partido que despreza. Em meio ao caos provocado pelo ex-tesoureiro, Lula não enfrentará resistência aos seus projetos de consagrar a candidatura da ministra e, de quebra, fazer do assessor pessoal Gilberto Carvalho o novo presidente do PT.
Delúbio tem argumentos explosivos para justificar sua reivindicação.

O militante perfeito, que sustentou até o fim a omertà, o código siciliano de honra e silêncio, salvando a burocracia partidária, almeja apenas a reciprocidade.

A direção que votará seu pedido terá que optar entre a honra que desmoraliza, ao aceitá-lo, ou a desonra que protege, ao recusálo.

Do alto de sua torre em Brasília, Lula se beneficia do luxo de assistir ao desenrolar do drama insinuando presidencialmente que nada deve ser deliberado antes da palavra do Judiciário.
É que, sob o seu ponto de vista, tanto faz se Delúbio volta ou não: a missão já está cumprida.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.