quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Ministério da utopia

Demétrio Magnoli, O Globo – 5 de agosto de 2010.

Intelectuais tendem à utopia, pois ela precisa de uma descrição e eles são seus autores. Isaiah Berlin não está entre os filósofos mais célebres precisamente porque é um pensador antiutópico. "As utopias têm o seu valor - nada amplia de forma tão assombrosa os horizontes imaginativos das potencialidades humanas -, mas como guias da conduta elas podem se revelar literalmente fatais", anotou Berlin. As utopias almejam a completa realização de um conjunto de premissas, com a exclusão de todas as outras. É um caminho muito perigoso, "pois, se realmente acreditamos que tal solução é possível, então com certeza nenhum preço será alto demais para obtê-la".

A democracia constitui um sistema político avesso à utopia porque, por definição, rejeita atribuir estatuto de verdade incontestável a qualquer conjunto de premissas ideológicas. Os intelectuais utópicos têm um lugar na democracia - o de instigadores do debate público. Mas o sistema democrático de convivência de ideias contraditórias se estiola quando eles são alçados à posição de sábios oficiais e suas utopias são convertidas em verdades estatais.

Samuel Pinheiro Guimarães, até outro dia secretário-geral do Itamaraty, foi guindado à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). No novo cargo, elaborou um documento intitulado O Mundo em 2022, ainda em versão preliminar, que circula no governo e no Itamaraty. Trata-se de um delineamento das tendências do sistema internacional, com propostas de políticas estratégicas do Brasil. Dito de modo direto, é a plataforma de uma utopia ultranacionalista, a ser aplicada num hipotético governo de Dilma Rousseff, que colide com os valores e as tradições da democracia brasileira.

Num texto escrito em português claudicante, o intelectual utópico expõe uma doutrina antiamericana que solicita uma curiosa articulação estratégica entre Brasil, Rússia, Índia e China "para reformar o sistema internacional e torná-lo menos arbitrário". Os Brics, acrônimo cunhado no interior de um banco de investimentos, constituem um "bloco" apenas na acepção restrita de que seus integrantes passaram a influenciar a governança econômica global. Eles, porém, não compartilham interesses geopolíticos relevantes - uma evidência clamorosa que escapa por completo à percepção de Guimarães, moldada por um obsessivo antiamericanismo.

Os equívocos teóricos pouco significam, perto das prescrições políticas. Nostálgico do "Brasil-potência" dos tempos de Ernesto Geisel, Guimarães atribui ao Estado os papéis de "estimular o fortalecimento de megaempresas brasileiras (...) para que possam atuar no cenário mundial globalizado" e de conduzir um programa de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de amplas implicações militares. Os significados desta última proposição podem ser entrevistos na passagem em que o autor define o Tratado de Não-Proliferação Nuclear como o "centro" de um processo ameaçador de "concentração de poder militar". A leitura do documento oferece indícios sugestivos para a compreensão da lógica subjacente à aproximação entre Brasil e Irã e à operação diplomática brasileira de cobertura do programa nuclear iraniano.

No programa ultranacionalista, ausências falam tanto quanto presenças. Ao longo de 54 itens, não há nenhuma menção aos direitos humanos. Não é surpreendente: um livro de Samuel Pinheiro Guimarães, publicado em 2006, qualificou a defesa dos "direitos humanos ocidentais" como uma forma de dissimular "com sua linguagem humanitária e altruísta as ações táticas das Grandes Potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos". A militância do governo Lula contra a política internacional de direitos humanos - expressa na ONU, em Cuba, no Irã, no Sudão, na China e em tantos outros lugares - não é um fenômeno episódico, mas reflete uma visão de mundo bem sedimentada.

Lastimavelmente, as ONGs brasileiras de direitos humanos financiadas pela Fundação Ford trocaram a denúncia de tal militância pela aliança com o governo na difusão da doutrina dos "direitos raciais".

A utopia regressiva de Samuel Pinheiro Guimarães colide com a Constituição, que veta a busca de armas nucleares e situa a promoção dos direitos humanos no alto das prioridades de política externa do Brasil. Se a sua plataforma política aparecesse na forma de artigo, isso não seria um problema - e, talvez, nem mesmo uma fonte de debates interessantes. As coisas mudam de figura quando ela emerge como documento de Estado, produzido num Ministério encarregado de formular as diretrizes estratégicas do País.

O governo Lula exibe, sistematicamente, inclinação a partidarizar o Estado. A contaminação ideológica da política externa é uma dimensão notória dessa inclinação. Há, contudo, um antídoto contra a doença, que é a supervisão parlamentar das diretrizes estratégicas de política externa. Nos EUA, uma nação presidencialista como a nossa, as prioridades e os orçamentos do Departamento de Estado são submetidos ao crivo do poderoso Comitê de Relações Exteriores do Senado, expressão do controle social, bipartidário, sobre uma política de Estado. O Senado brasileiro tem uma Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Entretanto, sua gritante ineficácia, que exprime uma carência quase absoluta de poder real, proporciona ao governo as condições para a continuidade da folia ideológica em curso.

A SAE foi concebida como uma jaula dourada para acomodar (e ridicularizar) Roberto Mangabeira Unger, quando ele aderia ao governo que definira como "o mais corrupto da história". Agora, sob Guimarães, a jaula transforma-se em linha de montagem de uma utopia ultranacionalista que funcionaria como a régua e o compasso da inserção internacional do Brasil. A Nação tem o direito inalienável de se proteger contra o Ministério da Utopia, sujeitando a política externa ao escrutínio democrático dos parlamentares.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Reintegração de posse

Denis Lerrer Rosenfield – O Globo, 2 de agosto de 2010.

O programa de governo da candidata Dilma Rousseff foi muito contestado por ter sido, em sua primeira apresentação, uma cópia fiel do programa do PT de fevereiro de 2010. A polêmica suscitada fez que houvesse uma substituição por novo programa, de julho deste ano, o qual introduziu poucas alterações substanciais, entre elas, a retirada da dita mediação no cumprimento de mandados judiciais de reintegração de posse.

Observemos que o 3.º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) foi muito criticado por seu forte componente liberticida, numa lista quase interminável em que constava igualmente o estabelecimento de condições restritivas para o cumprimento de decisões judiciais de reintegração de posse. Tendo sido esse ponto retirado, parecia que o contencioso estaria resolvido. Certo? Não, errado!

A relativização de decisões judiciais já está em curso, num evidente desrespeito ao Poder Judiciário. Em 11 de abril de 2008 foi editado um Manual de Diretrizes Nacionais para a Execução de Mandados Judiciais de Manutenção e Reintegração de Posse Coletiva pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, Departamento de Ouvidoria Agrária e Mediação de Conflitos. Ou seja, o que o PNDH-3 procurou fazer foi apenas tornar legal uma medida em curso, com o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) decidindo as condições de cumprimento de decisões do Poder Judiciário. É espantosa essa ingerência em decisões de outro Poder, como se a Ouvidoria Agrária pudesse decidir por ela mesma sob que condições pode ou não operar a polícia.

Chama a atenção o vocabulário utilizado. As invasões, com sequestro de pessoas, destruição de maquinário, morte de animais, uso ostensivo de facões, às vezes de armas de fogo, utilização de crianças como escudo, incêndio de galpões, são denominadas "ocupações". Se uma pessoa tiver sua casa ou seu apartamento invadido, não se esqueça, não se trata de uma invasão, mas de uma "ocupação". Como se não fosse suficiente, a cartilha fala dos "direitos humanos" dos "ocupantes", não dos "ocupados", isto é, dos invadidos.

A inversão é total. Quando da proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, no início da Revolução Francesa, ficou claro que ela visava os direitos fundamentais dos indivíduos, dentre os quais, os direitos de expressão, circulação, pensamento e de propriedade. Ora, estamos diante de uma verdadeira perversão, pois a doutrina dos direitos humanos está sendo usurpada para sufocar os direitos individuais e o direito de propriedade, sem os quais falar de direitos humanos se torna uma expressão vazia.

Dentre as providências do manual, consta que a unidade policial, ao receber a "ordem de desocupação", deverá articular com o "Ministério Público, o Incra, a Ouvidoria Agrária Regional do Incra, a Ouvidoria Agrária Estadual, a Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública, as Comissões de Direitos Humanos, a Prefeitura Municipal, a Câmara Municipal, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Delegacia de Reforma Agrária, a Defensoria Pública, o Conselho Tutelar e demais entidades envolvidas com a questão agrária/fundiária para que se façam presentes durante as negociações e eventual operação de desocupação".

Tive o cuidado de fornecer essa lista exaustiva com o intuito de mostrar que tal condição simplesmente dilataria ou inviabilizaria o próprio cumprimento da decisão judicial. Qualquer uma dessas entidades poderia dizer que não está de acordo com um ou outro ponto, postergando indefinidamente sua execução.

Atente-se, na lista, para a presença do Incra e da própria Ouvidoria Agrária. Ora, essas entidades têm sistematicamente sido partes envolvidas nos processos, defendendo a posição dos ditos movimentos sociais, verdadeiras organizações políticas de caráter leninista, que contestam a economia de mercado, o direito de propriedade, o Estado de Direito e a democracia representativa. Seus modelos de sociedade são Cuba e a Venezuela de Hugo Chávez. O MST estaria, então, dos dois lados do balcão: como invasor e por meio de seus representantes em algumas dessas instâncias.

Observe-se, ainda, que a cartilha contempla que todas essas instâncias participariam das "negociações" para o cumprimento de decisões judiciais. Ora, decisões judiciais são para ser cumpridas, e não negociadas por representantes indiretos dos próprios invasores ou por outras instâncias do Executivo ou da sociedade. Teríamos aqui uma inovação "revolucionária": o MDA e os por ele designados negociariam as condições de cumprimento ou não de uma decisão judicial. Estariam "ocupando", dito melhor, "invadindo" as funções próprias do Judiciário. Eis por que o manual chega a falar de "eventual operação de desocupação". De fato, ela se tornaria totalmente eventual, se não aleatória.

Outra obra-prima da cartilha diz respeito a que a polícia não realizará o "desfazimento de benfeitorias existentes no local ou a desmontagem de acampamento", salvo por decisão voluntária dos "ocupantes", isto é, dos invasores. A destruição de benfeitorias das propriedades pelos invasores é permitida, porém as supostas benfeitorias e os acampamentos dos invasores devem permanecer intactos. Aqueles que foram invadidos deveriam manter intocadas as "obras" dos invasores, não podendo dispor integralmente de suas propriedades.

O festival de arbitrariedades parece não conhecer limites. Ainda na operação de "desocupação", a polícia, perante os "negociadores", "dependerá de prévia disponibilização de apoio logístico, tais como assistência social, serviços médicos e transporte adequado, que deverá ser solicitado, por ofício, à autoridade judicial competente". Por que não utilizar os próprios ônibus e automóveis que foram empregados pelos invasores? Por que não utilizar o apoio logístico da organização revolucionária? Por que o contribuinte deve pagar por isso?