sábado, 18 de setembro de 2010

DIOGO MAINARDI: EXCESSO DE JOSÉ DIRCEU

“No fim, Dirceu voltou a tratar da imprensa. Ele antecipou que pretende dizer o seguinte, quando Dilma estiver eleita: ‘Ó, não adiantou nada. Estamos aqui mais quatro anos’. Dirceu está certo. Ó, não adiantou nada”.

O problema do Brasil é o excesso de liberdade da imprensa. Quem disse isso, em outras palavras, durante um encontro com sindicalistas baianos, foi José Dirceu. Eu digo o contrário. Eu digo que o problema do Brasil é o excesso de liberdade de José Dirceu.

Duas semanas atrás, em sua página no Twitter, Indio da Costa publicou uma fotografia que resume perfeitamente o excesso de liberdade de José Dirceu. Ele está no Rio de Janeiro, na pista do Aeroporto Santos Dumont, embarcando num jato particular, um Citation 10 com o prefixo PT-XIB. O excesso de liberdade da imprensa permite indagar quem sustenta o excesso de liberdade de José Dirceu.

O plano de José Dirceu para eliminar o problema do excesso de liberdade da imprensa tem duas partes. A primeira parte é a montagem de um sistema estatal que controle a atividade das empresas jornalísticas e que puna qualquer tentativa de fazer aquilo que ele chamou de “abuso do poder de informar”. Isso mesmo: Conselho Federal de Jornalismo. Isso mesmo: Ancinav. Isso mesmo: Confecom.

A segunda parte do plano de José Dirceu é aliar-se a empresários do setor da imprensa exatamente como o PT se aliou a José Sarney e a Renan Calheiros no Congresso Nacional. “O momento histórico que estamos vivendo”, segundo José Dirceu, é ruim para o “movimento socialista internacional”. Por isso, em vez de tentar fazer seu próprio jornal, o PT deve continuar negociando com alguns grandes grupos. Na prática, isso significa garantir o excesso de liberdade do bispo Edir Macedo e da Rede Record.

No mesmo encontro em que apresentou seu plano para eliminar o excesso de liberdade da imprensa, José Dirceu apresentou também seu plano para a reforma política. De acordo com ele, é necessário duplicar ou triplicar imediatamente a quantidade de dinheiro público destinada aos partidos. Ele advertiu que, sem esse dinheiro, o PT prosseguirá com suas práticas de “caixa dois, corrupção, nomeação dirigida, licitação dirigida, emenda dirigida, superfaturamento e tráfico de influência”.

José Dirceu disse que, no poder, o PT valorizou o servidor público. Claro que é verdade: o filho de Erenice Guerra valorizou-se, o outro filho de Erenice Guerra valorizou-se, o irmão de Erenice Guerra valorizou-se, a irmã de Erenice Guerra valorizou-se. José Dirceu falou até sobre a saúde de Dilma Rousseff, desmentindo o que ela própria diz sobre o assunto: “Ela passou por um câncer. E sente muito isso ainda”.

No fim de seu encontro com os sindicalistas baianos, José Dirceu voltou a tratar da imprensa. Ele antecipou que pretende dizer o seguinte, quando Dilma Rousseff estiver eleita: “Ó, não adiantou nada. Estamos aqui mais quatro anos”.

José Dirceu está certo. Ó, não adiantou nada.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

DEMÉTRIO MAGNOLI: OGRO, SIM, SENHOR!

O Globo, 16/09/10

“O poder central, no México, não reside no capitalismo privado nem nas associações sindicais nem nos partidos políticos, mas no Estado. Trindade secular, o Estado é o Capital, o Trabalho e o Partido. Não obstante, não é um Estado totalitário nem uma ditadura.” Octavio Paz caracterizou desse modo o sistema político de seu país num texto seminal de 1978, O Ogro Filantrópico. Sugiro a leitura aos analistas que se eriçam agressivamente diante da sugestão de que há risco real de “mexicanização” da democracia brasileira remodelada pelo lulismo.

Traçar um paralelo não é postular uma identidade. Paralelos servem para iluminar uma similitude crucial. O sistema político brasileiro tende a cristalizar um bloco de poder hegemônico que exclui a possibilidade de alternância no governo e emerge como fruto da imbricação do Estado com um leque de interesses expressos em partidos, grupos empresariais, elites sindicais e movimentos sociais. O México dos tempos áureos do Partido Revolucionário Institucional (PRI) é o melhor exemplo de um sistema dessa natureza.

Lula confessou, mais de uma vez, sua admiração por Ernesto Geisel. Sob a inspiração geiseliana, tão óbvia na interlocução com Delfim Netto, o lulismo assimilou a seu bloco de poder um setor do grande empresariado. As empresas estatais, os financiamentos subsidiados do BNDES e os capitais de fundos de pensão geridos por sindicalistas petistas são as ferramentas dessa assimilação, que abrange grupos de telecomunicações, empreiteiras, conglomerados da petroquímica e da siderurgia. Na interface das alianças entre capitais públicos e negócios privados vicejam intermediários com acesso privilegiado ao governo. O castrista José Dirceu aprendeu as delícias de um capitalismo de favores que renasce no rastro “etapa chinesa” da globalização e propicia uma troca de pele da economia brasileira.

Lula enxerga-se como sucessor de Getúlio Vargas, o “pai dos pobres” original. Sob o influxo do varguismo, seu governo repaginou o imposto sindical, cooptando as centrais sindicais e inserindo a elite adventícia de sindicalistas no bloco de poder. O aparato sindical chapa-branca, além de operar nos fundos de pensão, forjando alianças empresariais, também fornece uma tropa de choque “popular” para embates contra a oposição parlamentar. Quando se tentou instalar uma CPI sobre a Petrobrás, a CUT, a UNE e a ABI convocaram manifestações públicas para acusar senadores do crime de traição à Pátria. Em três anos, entre 2006 e 2009, tais entidades receberam R$ 12 milhões em financiamentos da estatal petrolífera.

Nenhum fenômeno histórico é igual a outro: paralelos servem, também, para iluminar diferenças. O PT não ocupa o lugar do PRI. Embora exerça funções essenciais que cabiam ao partido dirigente mexicano, especialmente a intermediação do governo com o sindicalismo e os movimentos populares, ele não serve como veículo partidário para as máfias políticas regionais. No bloco de poder do lulismo, essa função é exercida pelo PMDB e, marginalmente, por outros partidos da base governista. O paralelo, contudo, mantém sua relevância analítica: como no México de um passado recente, o arco político situacionista estende-se da esquerda à direita, dissolvendo barreiras doutrinárias. O clã Sarney, Fernando Collor, Jader Barbalho, Michel Temer, Ciro e Cid Gomes foram incorporados ao “partido de Lula”. Todos eles têm a prerrogativa de subordinar a seus interesses um fragmento do Estado neopatrimonalista.

Um sistema político de tipo “mexicano” nada tem de harmônico. As forças incongruentes que participam do bloco de poder se encontram em incessante concorrência pela captura e manutenção de posições estratégicas no “ogro filantrópico”. A guerrilha intramuros, mais relevante que as escaramuças eleitorais com uma oposição fadada à derrota, realiza-se por meio da negociação e da chantagem. Quando não se alcança um compromisso, vazam-se informações sigilosas que detonam escândalos de corrupção. O “fogo amigo”, que atingiu um ápice no episódio do mensalão, expõe periodicamente ao público, como clarões na noite, imagens caleidoscópicas das entranhas do poder.

O lulismo é uma obra em construção. Há anos Lula acalenta a ideia, várias vezes explicitada, de erguer um partido mais amplo que o PT. A indicação pessoal de Dilma Rousseff como sucessora, um dedazo bem ao estilo mexicano, foi apenas o primeiro golpe assestado contra o PT nas eleições em curso. Em Minas Gerais, no Maranhão, no Paraná, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, o presidente pôs seu partido de joelhos, impondo-lhe a submissão a grupos políticos hostis e quebrando a espinha da militância petista tradicional. O triunfo eleitoral da candidata palaciana pode representar uma plataforma para a edificação do almejado “partido de Lula”. Nessa hipótese, que demanda a destruição do PT, o sistema político brasileiro derivaria um pouco mais no rumo da “mexicanização”.

Não havia no regime do PRI um centro de poder personalista e carismático. O presidente funcionava apenas como gerente temporário do bloco de poder, não dispondo do direito de exercer mais de um mandato. O gesto de nomeação do sucessor, o dedazo, simbolizava tanto o seu zênite quanto o início de seu ocaso definitivo. No Brasil do lulismo, ao contrário, o centro de poder corporifica-se na figura carismática de Lula - que, com o dedazo, pretende perpetuar essa sua condição. Tal diferença não é um detalhe, gerando interrogações decisivas sobre o futuro do sistema político brasileiro. Será Lula capaz de exercer a arbitragem do bloco de poder que construiu sem dispor da caneta presidencial? No presidencialismo brasileiro, é possível governar a partir dos bastidores, por intermédio de um fantoche?

O registro da “mexicanização” permite, ao menos, identificar as perguntas certas. É tudo o que se quer de um paralelo.