quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A America Latina vai bem, obrigado

ELIO GASPARI - O Globo - 28/01/2008

Lula e Barack Obama conversaram por 25 minutos e, segundo a narrativa do Planalto, Nosso Guia não pronunciou a palavra Cuba. Como diria Rick (Humphrey Bogart) no aeroporto de Casablanca: “Luiz, esse é o começo de uma bonita amizade.” Cuba não é um problema brasileiro, é um problema americano e Obama sabe que precisará descascar esse abacaxi.

Ele não tem medo do comunismo de museu da Ilha, o que os americanos temem é uma fuga em massa de cubanos para Miami. A América Latina não é parte desse problema, é parte da solução.

A região vive um período de paz, progresso e diversidade. Completam-se em março 32 anos do golpe militar argentino, o último do gênero. (Noves fora o fracassado Putsch dos grãfinos de Caracas, estimulado pela Casa Branca em 2002.) A agenda Brasil-Estados Unidos não tem contencioso. Tem avenidas para um melhor entendimento, dos biocombustíveis ao meio ambiente.

Isso não quer dizer que os demônios estejam quietos. Basta um pouco de contorção intelectual para se considerar a América Latina um continente em ebulição, com o chavismo venezuelano, a mística indígena boliviana, o esquerdismo de Rafael Correa e, quem sabe, a ingenuidade do paraguaio Fernando Lugo. Todos eleitos, dois deles confirmados nos mandatos por referendos populares.

É interessante observar que a turma do contorcionismo estava calada e contente quando Alfredo Stroessner governava o Paraguai, Augusto Pinochet, o Chile e os generais açougueiros, a Argentina.

A encrenca que Bush deixou para Obama está alhures. Imagine-se um cenário no qual houvesse um país latinoamericano metido com o narcotráfico, gastando uma receita de US$ 716 milhões, enquanto fatura US$ 4 bilhões no comércio de drogas. Esse país existe e não é a Bolívia do companheiro Evo, mas o protetorado americano do Afeganistão, governado pela cleptocracia de Hamid Karzai.

Sob as armas de Bush, o Afeganistão tornou-se o provedor de 90% do ópio consumido no mundo. O narcotráfico carrega metade do PIB do país. Lá os Estados Unidos vivem a guerra externa mais longa de sua história e o companheiro Obama quer manter 60 mil soldados no pedaço. Os narcotraficantes são seus aliados.

(Registro necessário: em 1989 havia generais americanos planejando uma intervenção militar na Amazônia, com o propósito de erradicar o tráfico de cocaína. Meses depois Saddam Hussein invadiu o Kuwait e eles mudaram de assunto.) Outro bom aliado dos Estados Unidos são os militares paquistaneses, com um arsenal de cem bombas atômicas.

O risco de essas armas serem atiradas contra a Índia é muito menor que a possibilidade de algumas delas acabarem nas mãos de terroristas. O dono do programa nuclear paquistanês tornou-se contrabandista de tecnologia e vendeu o caminho das pedras para a Coréia do Norte. Ajudou o Irã e foi apanhado em 2003, entregando centrífugas à Líbia.

Comparada com essas regiões (e essas agendas), a América Latina é um balneário. Evo Morales e Hugo Chávez expulsaram os embaixadores americanos. E daí? Chávez será um valente no dia em que parar de vender petróleo aos americanos. O antiamericanismo verbal não faz mal a ninguém e, com Obama, arrisca sair de moda. É preferível ter Evo Morales por inimigo do que Hamid Karzai como amigo.

ELIO GASPARI é jornalista.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A tragédia do Zimbábue

PETER FRY, O Globo, 27/01/2009

Com o passar dos dias, a tragédia de Zimbábue se aprofunda. Agora, não bastassem uma inflação de mais de 2 milhões por cento ao ano e uma escassez alarmante de comida num país que antes produzia alimentos para toda a região, Zimbábue enfrenta uma epidemia de cólera.

Num artigo escrito originalmente para o “New York Times” e publicado há poucos dias no GLOBO, Celia Dugger arrola as causas desta calamidade: políticas catastróficas para a agricultura, que incluíram o confisco de “fazendas comerciais”, e um partido político que usou terra e comida como armas para se manter no poder. Por seu lado, o presidente de Zimbábue, Robert Mugabe, culpa as sanções do Ocidente. Dugger aponta para uma terrível ironia nesta história. Os líderes ocidentais, apesar de criticar Mugabe e torcer para que seja substituído, ajudam a sobrevivência do regime através de doações de remédios e alimentos.

Mas me permitam apontar para a causa que talvez esteja na base de todas as outras: a persistência do pensamento racista sobre o qual foi construída a colônia britânica da Rodésia do Sul, que se tornou Zimbábue em 1980 após uma guerra de independência que durou mais de dez sangrentos anos.

A colônia da Rodésia do Sul devia pouco ao apartheid do país vizinho, a África do Sul. Tudo era segregado racialmente. Zonas residenciais, áreas rurais, escolas, hospitais, restaurantes, bares e retretes específicos eram destinados aos “europeus”, aos “africanos”, aos “indianos”, e aos “coloureds”, filhos de filhos de pais de “raças” distintas. Foi neste país que nasceram e se criaram Mugabe e seus colegas mais próximos.

Para pôr fim à guerra de independência, Mugabe concordou em não mexer com a estrutura política e econômica do país por um período de dez anos. Aceitando os conselhos de Samora Machel, encorajou os grandes fazendeiros brancos a ficarem. Muitos se recusaram e rumaram para a África do Sul ou a Austrália. Os que ficaram fizeram concessões.
Melhoraram as condições sociais dos seus empregados e alguns desenvolveram projetos para incorporar a população local à agricultura comercial.

Desde o início da colonização nos finais do século XIX, os poucos colonos que conseguiram vingar como fazendeiros no altiplano desenvolveram um etos rude, é verdade, mas economicamente eficaz. Os grandes fazendeiros acabaram se tornando a espinha dorsal da economia de Zimbábue produzindo as matérias-primas para as indústrias de alimentação e tecelagem, e a mais importante fonte de divisas estrangeiras, o tabaco. Até poucos anos atrás, Zimbábue foi o principal exportador de tabaco no mundo.
Como a distribuição da terra era sempre vista como uma das grandes injustiças do regime colonial, Mugabe embarcou num projeto de reforma agrária com financiamento britânico baseado no princípio willing buyer willing seller. O governo compraria as fazendas cujos donos quisessem vender.
Mas quando se percebeu que estas fazendas acabavam quase sempre nas mãos dos amigos políticos do próprio Mugabe, que as mantinham apenas como investimento imobiliário, a verba britânica secou. Foi assim que Mugabe inaugurou uma nova “política de agricultura”, expulsando os fazendeiros brancos pelas mãos de supostos veteranos da guerra de independência.

A expulsão dos agricultores brancos foi um tiro racista no pé. Faltaram alimentos e, como os insumos para a indústria minguaram, a economia entrou numa espiral inflacionária, produzindo uma escassez generalizada, que poupou, é claro, apenas a elite do poder.

A maioria dos analistas da situação de Zimbábue argumenta que Mugabe tirou a “carta racial” do seu baralho num ato cínico para se manter no poder. Pode ser. Mas há outra interpretação possível. Sem ter a visão de Mandela ou de Samora Machel, que perceberam os males do racismo, Mugabe e seus aliados pensam com os conceitos racistas que moldaram o mundo social onde eles nasceram e se criaram. Eles são, nesse sentido, fruto da política racista de seus colonizadores. Quando olham para os bem-sucedidos agricultores de Zimbábue, não veem agricultores, veem agricultores brancos. Preferiram ferir mortalmente a economia de que conviver com os filhos e netos dos antigos colonizadores. E os chefes dos Estados vizinhos (com duas notáveis exceções) se recusam a criticar Mugabe porque eles próprios permanecem prisioneiros do mesmo pensamento racista que não reconhece que racismo é racismo independentemente da cor de pele de quem o perpetra.

PETER FRY é antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Sem motivos para arrependimentos

Christopher Hitchens/Revista Época

Sim, sim. Eu estava nas ruas do centro de Washington, circulando entre os entusiasmados e os crédulos. Sim, eu estava no National Mall no domingo, e não mais choroso do que quem estava a meu lado, mas nem também muito menos. Sim, era eu, em um dos bailes, fazendo um pouco o papel de idiota enquanto chacoalhava ao som de Biz Markie, o DJ da elite negra de Washington. Em outras palavras, eu não reconsideraria meu voto em Barack Obama. Mas quero dizer por que eu ainda não gostaria que Al Gore tivesse vencido George W. Bush em 2000 ou que John Kerry tivesse saído vencedor em 2004.

No filme W, de Oliver Stone, que não é muito bom, mas surpreendentemente foi muito bem recebido, há um acontecimento que não aparece na tela. A colisão dos dois aviões com dois grandes arranha-céus não é mostrada (e faz-se referência a isso apenas uma vez, muito indiretamente). Não pode ser porque não ajudaria em nada para fazer uma imagem ruim de Bush. Em geral, é senso comum que ele agiu de maneira errática naquele dia e fez o pior discurso de seu mandato à noite. Então, por que Stone perderia a chance de pôr essa cena no filme?

A resposta é que são os acontecimentos do 11 de setembro de 2001 que explicam a transformação de George Bush de um conservador a favor do Estado mínimo meio preguiçoso em um político intervencionista. O problema dessa análise, do ponto de vista da esquerda, é que ela dá pouca margem para a especulação sobre sua relação edipiana com seu pai, suas fantasias frustradas de vingança contra Saddam Hussein, o alcoolismo sem bebida, e todo o resto.

Nunca somos convidados a nos perguntar o que teria acontecido se os democratas estivessem no poder naquele outono. Mas poderia valer a pena especular por um segundo. A Lei do Antiterrorismo e da Pena de Morte Efetiva, aprovada rapidamente no Congresso por Bill Clinton depois da explosãozinha da bomba de Oklahoma, foi corretamente descrita pela União Americana pelas Liberdades Civis como o pior retrocesso da causa dos direitos dos cidadãos. Dado esse precedente e multiplicando-o nas devidas proporções, podemos ter bastante certeza de que escutas telefônicas e ficar jogando água na cara de interrogados teriam se tornado coisas familiares e que teríamos até ouvido algumas defesas dessas práticas pela esquerda. Não sei se Gore teria pensado em usar Guantánamo, mas isso levanta a questão interessante – que agora vai ser enfrentada pelo novo governo – sobre onde devem ser mantidos esses indivíduos perigosos, principalmente porque não se espera que eles sejam soltos. Haveria uma prisão sórdida em algum lugar, ou muito mais mortos no campo de batalha, pode ter certeza.

Por que eu não lamento que George W. Bush tenha
derrotado Al Gore e John Kerry

A Guerra do Iraque poderia ter sido evitada, apesar de tanto Bill Clinton como Al Gore terem dito repetidas vezes que outro round definitivo com Saddam Hussein era, devido a seu flagrante desafio a todas as decisões relevantes da ONU, inevitável no futuro. E a desvantagem de evitar a intervenção no Iraque é que um ponto de estrangulamento da economia mundial ainda estaria sendo controlado por uma família psicopata que mantinha especialistas em armas de destruição em massa à mão e que pagava homens-bomba suicidas pela região. Em suas entrevistas de despedida, o presidente Bush não conseguiu encontrar muita coisa para dizer em sua defesa nesse ponto, mas acho que os historiadores não vão chegar à conclusão de que a remoção de Saddam Hussein era uma coisa que a comunidade internacional deveria ter adiado por mais tempo.

As falhas óbvias – em particular a arrogância e a insanidade cada vez maiores dos ditadores do Irã e da Coreia do Norte – pelo menos são falhas em seus próprios termos: a falha em corresponder à retórica original e a falha em combinar imperativos dos direitos humanos com os de geoestratégia e segurança. Novamente, não está claro para mim como qualquer outro governo teria se comportado. O colapso do sistema financeiro tem raízes em uma tentativa de longa data, que não é vergonhosa em si, de colocar a casa própria ao alcance até dos menos favorecidos.

Então, a velha pergunta “comparado a quê?” não permite superficialidade.“Comparado a quê?” não é bem uma defesa. E nem esta coluna tem exatamente a intenção de ser uma defesa. É só que há um elemento de soberba em toda a atual onda de esperança, e começo a ficar com medo de como vai ser a sensação do dia seguinte.