sábado, 22 de janeiro de 2011

GUILHERME FIÚZA: A PRESIDENTE NA CHUVA (O Globo, 22 de janeiro de 2011)

O brasileiro é, antes de tudo, um crédulo. Deem-lhe um pretexto para ter fé em alguma coisa, e ele se lambuza de esperança. Não poderia ser diferente com a sucessão presidencial. Até os críticos de Luiz Inácio da Silva resolveram enxergar um novo tempo com a ascensão da "presidenta". É como se o país saltasse do último capítulo de Sílvio de Abreu para o primeiro de Gilberto Braga. Hora de acreditar em outro enredo.

E eis que a grande vedete desse tal novo tempo é o silêncio de Dilma Rousseff. Mesmo os que se opunham ao truque eleitoral do PT, em que Luiz Inácio tirava sua coelha da cartola e lhe dava corda para governar, estão vendo mudança em tudo. Se Lula falava demais, o silêncio de Dilma significa austeridade e trabalho. O Brasil acordou em 2011 decidido a acreditar na "especialista em gerência". Assim é, se lhe parece. Somos 190 milhões de Gilbertos Bragas.

Na vida real, porém, continua valendo o velho ditado (ou a melhor versão dele): de onde menos se espera é que não vem nada mesmo. Como se viu na campanha eleitoral, e antes dela, a especialista em gerência nem sempre conseguia completar um raciocínio. Tropeçava em números, se confundia com percentuais, torturava conceitos - incidentes não muito típicos de especialistas em gerência.

Para quem não esperava nada de Dilma Rousseff, ela correspondeu plenamente como presidente eleita. Sumiu de cena. Não deu uma palavra nem sobre a guerra nos morros do Rio. E, quando seu governo começou, a presidente continuou firme em seu exílio existencial. Nunca antes na história deste país um mandato presidencial começara assim, com cara de feriado.

Nenhuma medida importante, nenhuma reforma estrutural, nada além de tiradas como o "PAC da miséria", para entreter a imprensa. A julgar pelas manchetes, o futuro inaugurado por Dilma era um lugar onde o PT e o PMDB disputam o balcão estatal, enquanto a vida nacional faz figuração ao fundo. Aí vieram as chuvas.

A tragédia na Região Serrana do Rio veio atrapalhar o script dos novos tempos. A presidente não poderia mais ficar governando em off, regendo a partilha fisiológica do Estado detrás do seu silêncio mitológico. Dilma apareceu. Deu um pulo nas cidades devastadas e, antes de retornar ao exílio, falou aos brasileiros numa entrevista coletiva. Foram 40 minutos inesquecíveis.

A especialista em gerência rompeu seu silêncio para dizer que "o Rio vive um momento muito forte". O país já estava com saudades da precisão de suas mensagens. Mas ela não parou por aí. Declarou que a ocupação de áreas de risco no Brasil é regra, não exceção. Esta foi a afirmação destacada nas manchetes - para se ter uma ideia da densidade do discurso da presidente no meio da catástrofe.

Ao falar em moradias de risco, Dilma fez uma inflexão importante: "Agora vou defender o presidente Lula." De fato, em meio ao flagelo das enchentes, com suas centenas de mortos, feridos e desabrigados, era urgente defender o presidente Lula. A presidente passou então a elogiar as maravilhas do programa Minha Casa, Minha Vida, idealizado por seu padrinho, como uma espécie de pílula do dia seguinte para os desabamentos: "O Minha Casa, Minha Vida não investe em área de risco. Nós não incentivamos a população a construir em área de risco."

Uma informação providencial para uma situação de emergência. Se alguém confundiu esse discurso com comício populista, cumpre esclarecer ao mau entendedor: isso é pura sagacidade gerencial.

Dilma respondeu também sobre o problema da lentidão na liberação de verbas para as áreas devastadas. Explicou que nenhum gestor público está autorizado a não prestar contas de seus gastos. É realmente fundamental, numa hora dessas, a presidente da República informar que está proibido o desvio de verbas federais. Coisa de Primeiro Mundo.

Completando a ação implacável do novo governo, quatro ministros de Estado subiram ao palco da tragédia para falar ao país. Liderados pelo irrevogável Aloizio Mercadante, ministro de Ciência e Tecnologia, eles leram uma lista de boas intenções extraídas de um seminário meteorológico de um ano atrás. Segundo Mercadante, daqui a quatro anos um sistema nacional de prevenção de catástrofes estará pronto, irrevogavelmente. E, daqui a dez anos, uns 20% dos que morreram agora não morrerão mais. Um papo solto, sem stress, para tranquilizar o pessoal da serra.

Com tanta eficiência, essa junta liderada por Mercadante poderia dar uma força ao ministro da Educação na tragédia do Enem - onde o número de vítimas também não para de crescer. Se não for possível, ao menos os estudantes desabrigados e os sem-universidade poderão se orgulhar de ser governados por uma especialista em gerência.

Ao resto dos brasileiros, especialmente depois do pronunciamento histórico da presidente durante a enxurrada, o melhor é continuar louvando o seu silêncio.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

DEMÉTRIO MAGNOLI: 700 MORTES E 8 PASSAPORTES (O Globo, 20 de janeiro de 2011)

Marco Aurélio Garcia qualificou como assunto "de uma irrelevância absoluta" a concessão de passaportes diplomáticos aos filhos e netos de Lula. Ele, certamente, considera relevante a tragédia que ceifou mais de 700 vidas e destruiu cidades inteiras na Região Serrana do Rio de Janeiro. Os dois eventos, cujos impactos sobre a vida nacional são incomparáveis, estão relacionados, ainda que indiretamente. Eles, além disso, têm igual relevância, pois procedem da mesma fonte: a delinquência atávica de uma elite política hostil ao interesse público.

A lei é cristalina ao listar os critérios que regulam a concessão de passaportes diplomáticos. O ex-ministro Celso Amorim violou a lei, a pedido de Lula, quando presenteou a prole estendida do ex-presidente com o privilégio reservado aos representantes do Estado. O gesto ilegal não é amenizado, mas agravado pelo recurso cínico à invocação do "interesse nacional". O que o Ministério Público precisa para acusar o ex-ministro e o ex-presidente de abuso de autoridade?

Certos grupos ambientalistas propensos à mistificação culpam as mudanças climáticas globais pela catástrofe no Rio de Janeiro. Mas as precipitações torrenciais e os deslizamentos em encostas de morros fazem parte da dinâmica climática e geomorfológica normal das serras do Sudeste brasileiro. A intensidade das chuvas não é explicação suficiente das causas de uma das maiores tragédias humanas da história do País. Uma urbanização descontrolada, com ocupação extensiva de encostas de morros e várzeas inundáveis, moldou o cenário do desastre. Os mortos, as famílias devastadas, os desabrigados são o produto de décadas de escolhas políticas baseadas numa racionalidade avessa ao interesse público e, muitas vezes, às próprias leis. O que o Congresso Nacional precisa para instalar uma CPI dedicada à investigação do enredo completo da tragédia anunciada?

O patrimonialismo "é a vida privada incrustada na vida pública", segundo a definição de Octavio Paz. Na sua trajetória rumo ao poder, o lulismo conectou-se com um anseio profundo da sociedade brasileira ao fazer a denúncia sistemática de uma elite política consagrada ao intercâmbio de privilégios oriundos do controle do aparelho de Estado. Lula tocou um nervo exposto com seus "300 picaretas do Congresso", tirada irresponsável que se converteu em canção popular e sintetizou a bandeira de mudança com a qual alcançaria o Planalto. De lá para cá, ele e seu partido traíram noite e dia o compromisso original. A emissão dos passaportes diplomáticos equivale a uma abjuração escrita: o presidente que sai transforma a corrupção em virtude, zombando da "lei das gentes".

Não há mais de 700 mortos no Rio de Janeiro porque Lula concedeu à sua descendência o privilégio ilegal, mas porque a elite política que hoje Lula personifica zomba da "lei das gentes". Cada uma das áreas de risco ocupadas na Região Serrana fluminense tem a sua história singular. Alguns bairros surgiram por incúria das autoridades públicas. Outros se estabeleceram sob o amparo de acordos espúrios entre loteadores e políticos em cargos de mando. Prefeitos e vereadores formaram clientelas eleitorais estimulando a ocupação de vertentes e várzeas, ou apenas condescendendo com a violação das normas. A catástrofe foi tecida com os fios de uma política que combina populismo, patrimonialismo e clientelismo. Na Austrália, inundações muito mais amplas deixaram um saldo de mortes que se conta na casa de poucas dezenas, não de várias centenas.

Lula e os seus não se limitaram a absorver os usos e costumes da elite política estabelecida, mas foram bem mais longe, produzindo uma espécie de elogio público do patrimonialismo. O ex-presidente proclamou a inimputabilidade de José Sarney (o "homem incomum"), mudou a lei para beneficiar a empresa financiadora do negócio de seu filho e, na hora da despedida, comportou-se como um potentado, oferecendo passaportes diplomáticos aos familiares com a desenvoltura de um pai que distribui ovos de Páscoa. Como exigir de autoridades estaduais e municipais o respeito à lei, a adesão à norma, quando a República se transfigura na fazenda dos Lula da Silva?

"Sempre tem a hora de fazer avaliação. Tem que se fazer uma autocrítica, por que se permitiu fazer tudo isso. Mas agora é resgatar corpos e ajudar famílias desabrigadas. Não vamos perder tempo nesse momento." O governador Sérgio Cabral não é mais responsável pela tragédia que seus predecessores ou que os prefeitos, vereadores e lideranças locais da Região Serrana do Rio de Janeiro. Contudo, ao fabricar uma acusação preventiva contra os críticos, ameaçando crismá-los como inimigos da ajuda às vítimas, revela-se mais inteligente - e muito mais nocivo ao interesse público. A sua operação de linguagem tem o objetivo de suspender o debate político enquanto perdurar a emergência humanitária. É a receita certa para proteger a elite política que parasita a sociedade.

Uma tristeza avassaladora começou a se espalhar pelo Brasil inteiro com as primeiras imagens da tragédia. A memória dos mais de 700 mortos merece um monumento que não seja feito de pedra nem se preste à demagogia das inaugurações políticas. O monumento só pode ser um programa plurianual ambicioso de reconstrução das cidades devastadas e remodelação estrutural dos padrões de ocupação do solo na Região Serrana fluminense e em inúmeras outras cidades e corredores urbanos do País. Os recursos para tanto existem, mas serão queimados na pira ardente das obras colossais da Copa do Mundo e da Olimpíada.

As chuvas de janeiro provocaram um trauma nacional duradouro. O verão não terminou. As águas da destruição ainda podem apagar o fogo do desperdício sem freios e das negociatas fabulosas promovidas em nome do orgulho nacional. É a única homenagem verdadeira que os vivos podem prestar aos mortos.