sexta-feira, 17 de abril de 2009

Por trás da polêmica, uma barreira ideológica

Ao contrário de muros como os de Berlim, os concebidos para separar favelas de áreas verdes não restringem direito de ir e vir

Carla Rocha e Fábio Vasconcellos

O muro e sua simbologia estão no centro de um debate apaixonado. Sem entrar no mérito técnico ou fazer juízo de valor sobre a solução encontrada pelo estado para conter a expansão de 11 favelas do Rio e proteger a Mata Atlântica, as opiniões se dividem entre argumentos com viés ideológico — o escritor português José Saramago chegou a lembrar o Muro de Berlim — e outros que defendem uma análise mais fria, admitindo que a construção pode até ser adotada em alguns casos, desde que exaustivamente discutida com os moradores.

Para alguns estudiosos, as comparações com o Muro de Berlim — que restringia o ir e vir entre as Alemanhas Oriental e Ocidental — e o de Israel, que separa judeus de palestinos, fogem da questão central, uma vez que, nas favelas do Rio, o muro não fechará acessos, não dividirá comunidades nem impedirá a entrada e saída de moradores — quem limita a circulação é o tráfico de drogas.

— É um exagero. Está se radicalizando um pouco, são imagens, figuras de linguagem, metáforas. Eu não acho que é um Muro de Berlim. É claro que o muro isoladamente, aparecendo como solução, é no mínimo um equívoco. O que não quer dizer que, em alguns casos, barreiras não possam ser usadas para proteger a Mata Atlântica ou as pessoas que moram no lugar. O importante é manter o diálogo com os moradores — diz o antropólogo Gilberto Velho, para logo emendar o que acredita ser mesmo o cerne do problema. — A política de habitação tem que ser séria, contínua, e deve privilegiar o transporte de massa.

O professor Ricardo Ismael, do Departamento de Sociologia e Política da PUC, diz que não sabe se o muro é bom ou ruim como solução, mas lembra que não se pode perder o foco:

— Há no Rio um conflito social que já é antigo e está presente na cidade desde os anos 50. Discordo da comparação com o Muro de Berlim, que era uma coisa drástica, as pessoas não podiam passar, se passassem, morriam. Havia a iminência de um terceiro conflito mundial, de um lado os socialistas e do outro os capitalistas, e ali cabia a discussão ideológica. Agora não. Mas o muro, por outro lado, pode ser um reconhecimento do poder público de que não consegue dialogar com estes setores sociais. Neste caso, também é ruim.

Ressaltando que se tratava de uma opinião pessoal, o secretário Nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri, não fugiu do assunto ontem:

— Se esse processo do muro for acompanhado de programas sociais do estado nas comunidades, isso não segrega. Se fosse classe alta, ou altíssima, também seria preciso medidas radicais para evitar que as mansões e as casas subissem os morros e tomassem conta da natureza.
O governador Sérgio Cabral afirmou que as manifestações de algumas lideranças comunitárias contra o muro é resultado da influência do tráfico. Ele classificou de “bobagem” a tese de que o muro segrega a cidade: — Quem dá palpite sobre o muro, vive com o muro do clube, da propriedade, dos condomínios. Agora o muro virou sinônimo de arbitrariedade? Isso é uma bobagem. Existem muros no dia-a-dia servindo de proteção das pessoas. Queremos dar ao morador da favela a mesma condição que o sujeito do asfalto tem. Estamos acabando com a idéia de cidade partida.

O ministro da Justiça, Tarso Genro, tem outra visão.
— Sinceramente não conheço o projeto do Rio. Agora, todos os muros que foram erguidos na história da modernidade não deram certo. O muro de Berlim, o muro que separa o México dos Estados Unidos. Creio que se a comunidade impugnar, certamente o governador vai revisar.

Vice-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Armando Mendes concorda com o ministro e afirma que, independentemente de não inviabilizar a circulação dos moradores, o muro pode sim ter uma conotação negativa.

— O discurso está completamente fora de contexto brasileiro. A gente resolve o problema da favela com integração, inclusive econômica. Se ele (o muro) for um delimitador agressivo, vai ser segregador. O simbolismo é grave. A gente também tem que cuidar do simbolismo no Brasil. É impossível aceitar uma coisa dessas.

Contenção sim, mas sem muros

Reunidos em assembleia, líderes comunitários repudiam barreiras

Célia Costa

Em reunião, ontem à tarde, na sede da Federação de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj), na Praça da República, líderes comunitários decidiram protestar contra o projeto do governo do estado de construir muros para separar as favelas das áreas verdes. A assembleia foi realizada a pedido da Associação dos Moradores da Rocinha. Representantes de cerca de cem comunidades do Rio consideram a proposta um tipo de segregação, mas afirmam que são a favor de outras medidas para impedir o crescimento desordenado das favelas.

Foi criada uma comissão, que marcará um encontro com o governador Sérgio Cabral para apresentar propostas alternativas ao muro. Entre elas, a construção de um anel viário no entorno da Rocinha. A proposta foi apresentada por Luiz Carlos Toledo, arquiteto responsável pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) da Rocinha.


Pôsteres de Chávez, Bolívar e Fidel nas paredes A reunião foi marcada por discursos políticos inflamados.

Na parede da sala, a existência de pôsteres do presidente da Venezuela, Hugo Chávez; do revolucionário venezuelano Simón Bolívar e do ditador cubano Fidel Castro parecia ajudar a aumentar o calor das discussões.

Além da comissão, está marcada uma nova reunião para o dia 6 de maio, quando os líderes comunitários decidirão sobre a realização de um ato público.

A pedido da Faferj, o defensor público Alexandre Mendes, no Núcleo de Terra e Habitação da Defensoria Pública, acompanhou a reunião e disse que medidas jurídicas poderão ser tomadas para impedir a construção dos muros.

Para o presidente da Faferj, Rossini Diniz, a ideia de cercar comunidades com muros é o mesmo que transformar as favelas em guetos.

— Somos a favor dos eco-limites, mas o estado e a prefeitura abandonaram o projeto. Por isso, não deu certo — disse Rossini.

A decisão dos líderes comunitários é oposta ao resultado de um pesquisa feita pelo Instituto Datafolha, publicada no GLOBO na última terça-feira, mostrando que o percentual dos cariocas mais pobres que aprovam a medida é maior do que o percentual dos que são favoráveis e têm renda familiar superior a dez salários-mínimos.

A pesquisa mostrou ainda que, nas próprias favelas, os moradores aprovam muros: 47% favoráveis e 46% contrários. Nas áreas próximas a favelas, 50% são a favor e 40%. No caso de quem mora longe das favelas, a situação se inverte: 44% é a favor da construção dos muros e 46%, contra.

Na reunião da Faferj, a Rocinha não estava representada apenas pelo presidente da associação de moradores, Antônio Ferreira Mello, o Xaolim.

Discretamente, acompanhado de alguns assessores, o vereador Claudinho da Academia (PSDC) apareceu apenas por alguns minutos, foi anunciado pelos integrantes da mesa, marcou presença e saiu sem falar uma palavra.

Um de seus assessores, Niura Maria Antunes, que se anunciou como integrante do Movimento dos Sem-Terra (MST), fez um longo discurso contra a construção dos muros. O MST, no entanto, nega que Niura exerça qualquer atividade no movimento. Segundo o MST, Niura é ligada a Zé Rainha, que é um dos fundadores do movimento, mas não faz mais parte do MST

Muros já deram certo

Barreiras no Alto Gávea e em Jacarepaguá conseguiram impedir o avanço de favelas sobre áreas verdes

Ediane Merola, Gustavo Goulart e Paula Autran, O Globo, 17 de abril de 2009

Discutida como novidade, a polêmica instalação de muros entre favelas e áreas verdes já é uma realidade concreta na cidade. Tanto o poder público quanto a iniciativa privada já ergueram barreiras para conter a expansão de comunidades irregulares no Rio. Há 25 anos, por exemplo, um grupo de moradores do Alto Gávea patrocinou a construção de um muro de 500 metros de extensão, que até hoje impede a Rocinha de cercar completamente o Morro Dois Irmãos.

Também na década de 80, o então prefeito Marcello Alencar inaugurou um muro no Morro da Chacrinha do Mato Alto, em Jacarepaguá. A barreira ainda serve de limite para a comunidade, que aprova a medida como forma de preservar o meio ambiente e levar mais segurança para os moradores das favelas.

Segundo dados do Instituto municipal Pereira Passos (IPP), de 1999 a 2008, a Rocinha cresceu 12.063 metros quadrados (passando de 852.968 a 865.032 metros quadrados ocupados). Já a Chacrinha do Mato Alto ficou 7.693 metros quadrados maior (a ocupação foi de 71.153 para 78.846 metros quadrados).

Diretor de Urbanismo da Associação de Moradores do Alto Gávea, o advogado Luiz Fernando Gabaglia Penna foi um dos que colaborou para a construção da barreira na Rocinha.

O muro, de três metros de altura, começa na Rua Sérgio Porto, na Gávea, e vai até o rochedo do Morro Dois Irmãos. Segundo ele, a barreira foi erguida, na época, a cem metros de distância das construções, que atualmente já fazem divisa com a parede. Por causa do crescimento da mata, hoje não é mais possível ver o muro, mas apenas o limite criado entre a favela e o verde.

— Era a época do governo de Leonel Brizola, que lançou o programa “Cada família, um lote” para a regularização fundiária de áreas de favela. Prevendo que a Rocinha iria se expandir por ali, fizemos reuniões, inclusive com representantes da Rocinha, e decidimos nos cotizar para construir o muro. Na época, deve ter custado algo em torno do equivalente hoje a R$ 500 mil. Contratamos os próprios moradores da comunidade para construí-lo — conta Luiz Fernando, acrescentando que a ideia de erguer o muro surgiu de um caso parecido na Chácara do Céu, no Alto Leblon: o empresário Antônio Galdeano havia construído algo semelhante para proteger o Parque da Cidade. Só que o terreno passou para a prefeitura na época em que Luiz Paulo Conde era prefeito, e foram abertas algumas passagens.

Na favela como ‘num condomínio fechado’

Luiz Fernando acrescenta que, de três em três anos, o muro da Gávea passa por obras de conservação, sendo que no primeiro governo Cesar Maia, quando o hoje ministro Alfredo Sirkis era secretário de Meio Ambiente, a prefeitura chegou a bancar alguns reparos necessários. Da casa do advogado não é mais possível observar o muro, que ficou registrado em fotos da época da construção. As imagens mostram burricos carregando os tijolos usados na barreira:

— Dizer que o muro é para separar ricos e pobres, que ele segrega, é loucura. O objetivo é preservar o meio ambiente. Quem diz o contrário é demagogo de gabinete, gente que nunca subiu numa comunidade. A cidade é toda dividida. Minha casa é cercada de muros. E as comunidades precisam de limites até para os governos investirem em saneamento, transporte. Sem controle, o projeto feito hoje fica defasado no dia seguinte — diz Luiz Fernando.

Na Chacrinha, o presidente da Associação dos Nordestinos do Brasil, Rozemberg Alves do Nascimento, fala em nome da comunidade e se diz a favor da construção de limites em favelas que, segundo ele, servem para cuidar do bem-estar dos moradores. Rozemberg acredita que o muro tenha mais de 480 metros de extensão e 2,10 metros de altura.

— O muro limita a comunidade, traz mais segurança, preserva o meio ambiente. Sintome num condomínio fechado — diz Rozemberg.

Na Fazenda Mato Alto, também em Jacarepaguá, a prefeitura criou uma ecobarreira, formada por casas da própria comunidade, pintadas de verde. Novas construções, dentro do limite, têm que passar pela aprovação da associação de moradores do local, presidida por Maria Ivonete Santana Madureira. Ela defende a limitação das favelas, mas diz que o poder público deve, em contrapartida, oferecer um programa habitacional adequado para as populações carentes.

— Além de controlar o crescimento, o governo tem que oferecer os serviços básicos para a população. A Rua Um, por exemplo, está sem iluminação. Já fizemos cinco protocolos na Rio Luz e ainda não conseguimos resolver o problema — acrescenta Ivonete.

domingo, 12 de abril de 2009

A evidência

Luís Fernando Verissimo - O Globo, 12 de abril de 2009

É fácil ter opiniões firmes sobre, por exemplo, o câncer (contra) e o leite materno (a favor). Já outros assuntos nos negam o conforto de pertencer a uma unanimidade, ou mesmo a uma maioria. São assuntos em que os argumentos contra e a favor se equilibram e sobre os quais a gente pode ter opiniões, mas elas estão longe de ser firmes. Até opiniões que você julgaria indiscutíveis - exemplo: nada justifica a tortura - são controvertidas, e basta ler as seções de cartas dos jornais para ver como a pena de morte, oficial ou extra-oficial, tem entusiastas entre nós. Em assuntos como aborto, cotas raciais nas universidades, etc. coisas como a religião, a formação, a ideologia e até o saldo bancário de cada um determinam as opiniões divergentes. E não vamos nem falar nos extremos opostos de opinião provocados por qualquer avaliação do governo Lula.

Mas há um assunto sobre o qual você talvez ingenuamente imaginasse que nenhuma discordância seria possível. A brutal evidência - geográfica, cartográfica, literalmente na cara, portanto independente de interpretação e opinião - da iniqüidade fundiária no Brasil, um continente de terra com poucos donos, era tamanha que durante muito tempo uma genérica "reforma agrária" constou do programa de todos os partidos, mesmo os dos poucos donos da terra. Era uma espécie de reconhecimento da injustiça inegavel que desobrigava-os de fazer qualquer coisa a respeito, retórica em vez de reforma. O aparecimento do Movimento dos Sem Terra acrescentou um novo elemento a essa paisagem de descaso histórico: os próprios despossuidos em pessoas, organizados, reivindicando, enfatizando e até teatralizando a iniqüidade, para contestar a hipocrisia. A evidência insofismável transformada em drama humano.

Pode-se discutir os métodos do MST, e até que ponto as invasões e a violência não dão razão à reação e não desvirtuam o ideal, além de agravar a truculência do outro lado. Mas sem perder de vista o que eles enfrentam: não só a injustiça que perdura, apesar de programas governamentais bem intencionados e de alguns avanços, como um Congresso recheado de grandes proprietários rurais, o poder político e financeiro dos agro-business e uma grande imprensa que destaca a violência mas sempre ignorou a existência de acampamentos do MST que funcionam e produzem - inclusive exemplos de cidadania e solidariedade. É a minha opinião.