segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O Bem

Denis Lerrer Rosenfield
O Globo
1 de setembro de 2008

Você quer que o Estado determine o que você deve fazer? Você pensa que o Estado sabe melhor do que você o que é o seu próprio bem? Você acha que o Estado sabe escolher melhor do que você o que são os seus valores morais e pessoais? Assim colocadas, essas perguntas remetem a questões centrais de filosofia moral, que acarretam conseqüências políticas das mais relevantes. No entanto, poderia também aflorar uma outra questão, relativa à sua atualidade, como se fosse um mero problema teórico, sem importância para a vida de cada um.

Engana-se quem pensa assim.

Gradativamente, o Estado brasileiro, em suas várias esferas, está se impondo cada vez mais em detrimento das escolhas individuais e, sobretudo, de considerações morais, que deveriam nortear a subjetividade de cada um. Trata-se da autonomia que cada um possui de decidir por si mesmo, exercendo uma discriminação racional daquilo que é melhor para si. Tem ocorrido freqüentemente uma suposta coincidência entre o que o indivíduo considera para si o bem e o que o Estado lhe apresenta enquanto tal, como se o politicamente correto fosse o caminho que permitiria essa identificação.

Há aqui uma armadilha.

O Poder Executivo, em particular, interfere progressivamente na vida de cada um, seja por atos administrativos como decretos, portarias, resoluções e instruções normativas dos mais diferentes tipos, seja por medidas provisórias, seja ainda por projetos de lei que vão na mesma direção.

Por exemplo, uma alteração, via administrativa, de uma alíquota do Imposto de Renda, tem uma incidência direta nos rendimentos individuais e familiares, como se o Estado soubesse fazer um melhor uso dos bens particulares.

Ocorre uma transferência de bens materiais, de propriedades, que surge travestida de uma justificativa de ordem moral, ancorada na concepção de que o Estado sabe moralmente melhor do que qualquer um o que é o seu bem próprio.

O Incra, por sua vez, determina em lugar dos assentados o que é melhor para eles, interferindo diretamente no seu cultivo, em última instância, em sua capacidade individual de escolha, como se um assentado fosse um tolo que deveria apenas seguir as diretrizes do Incra e dos movimentos ditos sociais. Assim, o cultivo de eucaliptos é proibido por esse órgão estatal, porque contraria as suas orientações, independentemente de que ofereça um melhor rendimento aos assentados do que outros cultivos ou lavouras. Por que não poderia um assentado escolher o cultivo que lhe dê maior renda e usufruir dos seus resultados? Tal “normalidade” não surge como uma tsunami, mas em volumes crescentes que vão ganhando consistência e poder. O caso da saúde é particularmente revelador. Em nome dela, há propostas de aumentos de contribuições, restrições quanto ao fumo mesmo em recintos que afetam somente os que usufruem desses atos, quanto à ingestão de bebidas alcoólicas ou quanto à publicidade de medicamentos. O Estado se apresenta como o grande patrocinador da saúde, quando está patrocinando somente a si mesmo. E o faz em nome do bem de cada um.

Quem lhe confere esse poder? Observe-se que, em nome da saúde, há projeto em curso para reviver a CPMF, fortemente rechaçada por toda a população brasileira. Como os brasileiros são, hoje, contrários ao aumento de impostos, este aparece disfarçado da figura moral do bem de todos. A moral surge como justificativa de um simples acréscimo da arrecadação tributária! Da mesma maneira, por que deveria uma autoridade governamental banir o fumo em locais especialmente destinados para isto, sem afetar os não-fumantes? Não sabe cada um discriminar o que é melhor para si, sem o auxílio da bengala estatal? Por que deveria o Estado determinar a “lei seca” graças a uma nova regulamentação apresentada com estardalhaço, como se fosse a salvação da saúde nacional? Por que o Estado deveria regulamentar a publicidade de medicamentos de livre compra em farmácias? Se a compra pode ser feita sem receitas, onde estaria o seu dano para a saúde? Amanhã, vai o Estado legislar ainda mais no lar de cada um, como já começa a fazer? Onde reside o limite, se o solar da casa já foi transgredido? Cabe ao Estado informar sobre os efeitos nocivos de determinados hábitos para a saúde pessoal. Não lhe cabe tomar o lugar da escolha individual.


Levemos esse argumento ao seu extremo.

Consideremos que a ingestão de colesterol e a de gorduras saturadas fazem mal à saúde. Pesquisas científicas referendariam essa avaliação.

Seguir-se-ia daí que seria função do Estado decidir o que cada pessoa deveria, por dia, tomar de sorvete ou comer de carne? Os indivíduos não poderiam tomar sorvete ou comer carne além de uma determinada quantidade? Haveria punição para os transgressores? Assim apresentada, a questão parece absurda, porém ela é, em seus efeitos, terrivelmente verdadeira.

Não faltam, inclusive, pseudopesquisas, que procuram justificar “cientificamente” essas medidas. Na verdade, a sua justificação reside numa determinada noção do bem de natureza propriamente política, estatal, que se reveste de uma vestimenta científica. Séries estatísticas, por definição, podem ser feitas de quaisquer coisas, bastando relacioná-las, sem que daí siga necessariamente uma relação causal. Tomemos o caso da proibição de ingestão de bebidas alcoólicas para condutores de veículos.

A redução da mortalidade nas ruas e estradas tem sido atribuída a essa lei. A correlação estabelecida se faz entre a nova lei e a redução da mortalidade. Por que não uma outra correlação, entre a fiscalização rigorosa da aplicação da lei, que poderia ser perfeitamente a anterior, e a redução da mortalidade? Se afrouxar a fiscalização, haverá provavelmente um aumento de acidentes automobilísticos, apesar da nova lei. No entanto, quando isto vier a ser comprovado, o efeito midiático buscado já terá sido atingido: o Estado sempre sabe o que é melhor para o indivíduo!

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