PETER FRY, O Globo, 27/01/2009
Com o passar dos dias, a tragédia de Zimbábue se aprofunda. Agora, não bastassem uma inflação de mais de 2 milhões por cento ao ano e uma escassez alarmante de comida num país que antes produzia alimentos para toda a região, Zimbábue enfrenta uma epidemia de cólera.
Num artigo escrito originalmente para o “New York Times” e publicado há poucos dias no GLOBO, Celia Dugger arrola as causas desta calamidade: políticas catastróficas para a agricultura, que incluíram o confisco de “fazendas comerciais”, e um partido político que usou terra e comida como armas para se manter no poder. Por seu lado, o presidente de Zimbábue, Robert Mugabe, culpa as sanções do Ocidente. Dugger aponta para uma terrível ironia nesta história. Os líderes ocidentais, apesar de criticar Mugabe e torcer para que seja substituído, ajudam a sobrevivência do regime através de doações de remédios e alimentos.
Mas me permitam apontar para a causa que talvez esteja na base de todas as outras: a persistência do pensamento racista sobre o qual foi construída a colônia britânica da Rodésia do Sul, que se tornou Zimbábue em 1980 após uma guerra de independência que durou mais de dez sangrentos anos.
A colônia da Rodésia do Sul devia pouco ao apartheid do país vizinho, a África do Sul. Tudo era segregado racialmente. Zonas residenciais, áreas rurais, escolas, hospitais, restaurantes, bares e retretes específicos eram destinados aos “europeus”, aos “africanos”, aos “indianos”, e aos “coloureds”, filhos de filhos de pais de “raças” distintas. Foi neste país que nasceram e se criaram Mugabe e seus colegas mais próximos.
Para pôr fim à guerra de independência, Mugabe concordou em não mexer com a estrutura política e econômica do país por um período de dez anos. Aceitando os conselhos de Samora Machel, encorajou os grandes fazendeiros brancos a ficarem. Muitos se recusaram e rumaram para a África do Sul ou a Austrália. Os que ficaram fizeram concessões.
Melhoraram as condições sociais dos seus empregados e alguns desenvolveram projetos para incorporar a população local à agricultura comercial.
Desde o início da colonização nos finais do século XIX, os poucos colonos que conseguiram vingar como fazendeiros no altiplano desenvolveram um etos rude, é verdade, mas economicamente eficaz. Os grandes fazendeiros acabaram se tornando a espinha dorsal da economia de Zimbábue produzindo as matérias-primas para as indústrias de alimentação e tecelagem, e a mais importante fonte de divisas estrangeiras, o tabaco. Até poucos anos atrás, Zimbábue foi o principal exportador de tabaco no mundo.
Como a distribuição da terra era sempre vista como uma das grandes injustiças do regime colonial, Mugabe embarcou num projeto de reforma agrária com financiamento britânico baseado no princípio willing buyer willing seller. O governo compraria as fazendas cujos donos quisessem vender.
Mas quando se percebeu que estas fazendas acabavam quase sempre nas mãos dos amigos políticos do próprio Mugabe, que as mantinham apenas como investimento imobiliário, a verba britânica secou. Foi assim que Mugabe inaugurou uma nova “política de agricultura”, expulsando os fazendeiros brancos pelas mãos de supostos veteranos da guerra de independência.
A expulsão dos agricultores brancos foi um tiro racista no pé. Faltaram alimentos e, como os insumos para a indústria minguaram, a economia entrou numa espiral inflacionária, produzindo uma escassez generalizada, que poupou, é claro, apenas a elite do poder.
A maioria dos analistas da situação de Zimbábue argumenta que Mugabe tirou a “carta racial” do seu baralho num ato cínico para se manter no poder. Pode ser. Mas há outra interpretação possível. Sem ter a visão de Mandela ou de Samora Machel, que perceberam os males do racismo, Mugabe e seus aliados pensam com os conceitos racistas que moldaram o mundo social onde eles nasceram e se criaram. Eles são, nesse sentido, fruto da política racista de seus colonizadores. Quando olham para os bem-sucedidos agricultores de Zimbábue, não veem agricultores, veem agricultores brancos. Preferiram ferir mortalmente a economia de que conviver com os filhos e netos dos antigos colonizadores. E os chefes dos Estados vizinhos (com duas notáveis exceções) se recusam a criticar Mugabe porque eles próprios permanecem prisioneiros do mesmo pensamento racista que não reconhece que racismo é racismo independentemente da cor de pele de quem o perpetra.
PETER FRY é antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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