DEMÉTRIO MAGNOLI, O Globo, 2 de abril de 2009
Delúbio Soares, o famoso militante que quer retornar ao PT, é homem de Lula. Pelas mãos de Lula, ele chegou à direção da CUT e, pelas mesmas mãos, saltou da central sindical à tesouraria do partido. Depois que Lula entrou triunfante no Palácio do Planalto, Delúbio cumpriu duas missões sucessivas: operou o esquema do mensalão e, em seguida, imolou-se para salvar o núcleo duro da direção petista, enquanto José Dirceu sacrificavase na pira ardente da segurança presidencial. O seu pedido de reingresso no PT pode ser interpretado apenas como o gesto de alguém que almeja uma cadeira parlamentar a fim de cavar uma trincheira diante da ameaça posta pelos tribunais. Mesmo se assim for, Delúbio cumpre, agora inadvertidamente, uma terceira missão estratégica.
Lulismo e petismo são fenômenos distintos, porém entrelaçados. Lula é um político conservador, salvacionista, de rara sagacidade. No ocaso da ditadura, o suposto mago Golbery do Couto e Silva o imaginou como o agente da destruição da esquerda no Brasil. O PT é um fruto estranho, mas cheio de vitalidade, do encontro tríplice, no outono do socialismo soviético, entre a velha esquerda castrista, a militância católica da “igreja da libertação” e uma nova burocracia sindical.
Lula precisa do partido, enquanto não puder substituí-lo. O partido precisa do apelo popular e do simbolismo histórico de Lula.
O mensalão serviu a um propósito de Lula, muito mais que do PT: estabilizar a maioria governista no Congresso.
A denúncia do mensalão partiu de um contrariado Roberto Jefferson, presidente do PTB e confidente pessoal do presidente, a quem Lula entregaria, nas suas palavras célebres, “um cheque em branco”. Na hora do desastre, Jefferson protegeu Lula que, por sua vez, desviou traiçoeiramente o raio para a precária casamata do PT. Curiosidades abertas a especulações políticas ou tramas ficcionais: hoje, Jefferson continua a presidir o PTB, que segue firme na base lulista e conserva seus valiosos cargos no governo e em empresas estatais.
Lula sobreviveu à tempestade do mensalão graças às ações paralelas e desconectadas de José Dirceu e FHC.
A pátria do primeiro é o PT, como burocracia política poderosa, de alcance nacional e influência internacional.
Ele sabia que seu partido seria convertido num monte de ruínas se o presidente desabasse. A pátria do segundo é a ordem emanada da redemocratização.
Ele temia que as instituições cedessem sob o impacto de um segundo impeachment, agora contra o símbolo da elevação da classe trabalhadora ao papel de protagonista da história brasileira.
A pátria de Lula é Lula mesmo.
Anos antes de chegar à Presidência, ele declarou que o partido de seus sonhos não é o PT, mas uma agremiação mais ampla, obviamente organizada em torno de sua liderança. Fechado o capítulo do mensalão, ao alcançar o píncaro de seu prestígio, o presidente tentou moldar o futuro, articulando uma aliança com o PMDB e emitindo sinais de fumaça na direção de Aécio Neves, o governador de Minas Gerais que contesta a pré-candidatura de José Serra. Contudo, a utopia lulista parece ter alcançado um paredão intransponível. A rede do PMDB não inspira a confiança mínima para que Aécio se decida a empreender o triplo mortal carpado rumo aos braços do presidente. A burocracia e a base do PT rejeitam a hipótese de diluir o partido num “novo PMDB”, liderado por Lula e gerenciado por Aécio. A terceira missão de Delúbio se inscreve na teia desse impasse.
Dilma Rousseff, uma outsider no PT proveniente do brizolismo, representa um compromisso entre dois fracassos. Lula a impõe ao partido como peça de reposição de seu impossível candidato ideal, que abriria as portas do futuro partido lulista. A burocracia do PT a recebe apenas porque foi privada pelas crises recentes de seu próprio candidato ideal, que seria um representante da máquina partidária. Sem Dirceu, Palocci, Mercadante ou Marta, e excluindose um jamais domesticado Eduardo Suplicy, resta apenas a candidata de proveta do Planalto. Mas nem todo o aparato de propaganda governamental é capaz de subordinar por completo o partido ao edito imperial de Lula. Para isso, só mesmo o fator Delúbio.
“Reintegrar Delúbio será fornecer farta matéria-prima para os ataques da direita, ajudando a reavivar a ofensiva lançada contra nós durante a crise de 2005”, gritou um alarmado Valter Pomar. “Direita”, para o secretário de Relações Internacionais do PT, é qualquer cidadão indignado com a compra em massa de parlamentares operada por Delúbio. Mas, abstraindo-se a notória delinquência de linguagem, é inevitável admitir que ele expõe com nitidez o sentido da missão delubiana. O gesto do homem que personifica o mensalão desarma politicamente o PT, prostrandoo diante da vontade de Lula.
Nos próximos meses, o PT realizará seus encontros internos. Deles resultarão uma nova direção e a unção do candidato à Presidência. A intervenção de Delúbio funciona como prelúdio para o assalto de Lula ao partido que despreza. Em meio ao caos provocado pelo ex-tesoureiro, Lula não enfrentará resistência aos seus projetos de consagrar a candidatura da ministra e, de quebra, fazer do assessor pessoal Gilberto Carvalho o novo presidente do PT.
Delúbio tem argumentos explosivos para justificar sua reivindicação.
O militante perfeito, que sustentou até o fim a omertà, o código siciliano de honra e silêncio, salvando a burocracia partidária, almeja apenas a reciprocidade.
A direção que votará seu pedido terá que optar entre a honra que desmoraliza, ao aceitá-lo, ou a desonra que protege, ao recusálo.
Do alto de sua torre em Brasília, Lula se beneficia do luxo de assistir ao desenrolar do drama insinuando presidencialmente que nada deve ser deliberado antes da palavra do Judiciário.
É que, sob o seu ponto de vista, tanto faz se Delúbio volta ou não: a missão já está cumprida.
DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.
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