quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Notas de um velório

Carlos Diegues
O Globo, 28/8/2005

De vez em quando, o cinema brasileiro “morre”. Tem sido assim através dos 110 anos de sua existência. É como se a nação não pudesse (ou não quisesse) acreditar que tem capacidade para produzir filmes. Quando eles são feitos e fazem algum sucesso, preferimos imaginar que se trata de uma ilusão passageira, uma exceção à regra de nossa impotência cinematográfica. O cinema é o nosso certificado de subdesenvolvimento, da nossa falta de vocação para a modernidade.

É verdade que nosso cinema sempre viveu de ciclos que se abrem com euforia e se encerram com brevidade. Uma crise econômica internacional, provocada pela guerra de 1914, acabou com o primeiro desses ciclos. O golpe de 1964, com o do Cinema Novo. Collor, com o da Embrafilme. E assim por diante. Nenhum desses fatores letais foi de exclusiva responsabilidade dos cineastas da época; mas a lenda que se registra é a da incompetência deles.

Em 94, graças a uma modesta e insuficiente Lei do Audiovisual, recuperouse a viabilidade de se produzir filmes no país. Seguiu-se à lei uma produção anual que cresceu de meia dúzia a cerca de 90 em 2007. Veteranos voltaram a filmar e mais de 200 diretores estrearam. Sucessivas safras de cineastas talentosos foram colhidas. Muitos de seus filmes continuam a receber prêmios importantes em festivais como Cannes, Veneza, Berlim, Sundance e Montreal, além de sucessivas indicações ao Oscar.

A ocupação de nosso próprio mercado por nossos filmes não se deu com a velocidade e a intensidade que desejávamos; mas ela também não está muito longe do que acontece em outros países, sobretudo latino-americanos. E isso não significa morte próxima. Já chegamos, em 2003, a cerca de 22% de participação no mercado, índice que nos colocava perto de países europeus com bom desempenho. Nada impede que sonhemos voltar, em breve, a essa marca, e mesmo superá-la. Para isso, precisamos, em primeiríssimo lugar, tomar consciência de que a natureza de nossa atividade está sendo modificada radical e rapidamente.

As novas tecnologias geraram novas formas de captação e difusão de imagens e sons, a arte e o negócio cinematográficos não são mais os mesmos. Este é um sentimento definitivo, uma convicção em todo o mundo cinematográfico — dos grandes estúdios de Hollywood (que estão financiando a digitalização do circuito exibidor americano e comprando redes de TV) a artistas independentes e fundamentais. Tanto do ponto de vista da criação como da comercialização, o filme não é mais o produto de poucos anos atrás; e, daqui a pouco, também não será mais o que é hoje. Não podemos ficar a reboque dos problemas de ontem, enquanto este amanhã está sendo construído sem nossa participação.

Da França à Coréia do Sul, da Romênia à Tailândia, cada país está se inserindo neste novo mundo de modo particular, preparando suas cinematografias para enfrentar a poderosa concorrência hegemônica, sem temer a cosmopolitização indispensável à atividade. No limite, toda cinematografia depende, em primeiro lugar, do talento de seus cineastas. Mas o Estado e a sociedade precisam provê-los de mecanismos adequados às bases institucionais, articulados com as economias locais, atentos aos projetos da população.

Temos que encontrar os nossos, o mais urgentemente possível. Para início de conversa, é preciso pensar no consumidor. Mas não apenas desse modo banal de fazer contas de botequim para saber se um filme foi ou não sucesso de bilheteria. O cinema é uma manifestação do imaginário humano, e a contabilidade dele não é tão simples assim. Precisamos fazer filmes para todas as telas e todos os públicos, mas é preciso também que essas telas e esses públicos existam de fato.

Como atingir o público se ele não está ao nosso alcance? Seria como instalar a indústria automobilística num país sem ruas e sem estradas. Para nos prepararmos para o futuro anunciado, precisamos enfrentar logo as nossas muitas ausências. A ausência de salas populares de exibição, que condena nossos filmes a um circuito de elite, que tem um dos piores desempenhos do mundo na relação entre número de salas e tamanho da população. A ausência de uma sólida relação de produção e difusão entre cinema e TV, sabendo-se que, no ano passado, só a Globo e a TV Cultura exibiram filmes brasileiros. A ausência deles na televisão paga, onde se encontram murados no gueto do Canal Brasil. A ausência de uma política realista de produtores e distribuidores para o vídeo doméstico, seja ele o DVD em decadência ou os emergentes VOD e Blue Ray. A ausência de compreensão de que a pirataria, tão maléfica, não é uma questão policial, e sim social, resultado do impulso de consumidores que não têm acesso ao produto audiovisual que desejam consumir. A ausência de um mecanismo de promoção e exportação de nossos filmes no mercado internacional, que representa hoje 65% da renda de um filme americano. E, sobretudo, a ausência de uma visão de mundo cinematográfica que contemple fenômenos como o da internet, da televisão móvel e similares, com suas conseqüências na transformação radical de nossa atividade.

Mas a ausência que mais nos prejudicará será sempre a da tolerância em relação à nossa diversidade. O cinema é hoje o espaço de uma grande arte, no qual se exprimem artistas originais que nos proporcionam encantamento e êxtase. Mas não podemos nunca nos esquecer de sua igual vocação para a arte popular, aquela que o cinema vem construindo desde sua origem. No Brasil, como em muito poucos países, temos a oportunidade real de fazer conviver essas duas grandes tendências. Não podemos deixar que a intolerância nos impeça de dar essa grande contribuição civilizatória à Humanidade do século XXI.

Para que esses últimos anos não se transformem em mais um ciclo, para que eles representem o início da consolidação do cinema como atividade permanente, é preciso nos dispormos a dar um salto por cima de tudo que não resolvemos no passado, para cair direto no século XXI, encarando as notáveis, fascinantes e tão ricas questões do audiovisual deste tempo. E essa não é uma tarefa apenas dos cineastas, mas também dos espectadores, dos cinéfilos, das autoridades, da imprensa, da academia, de toda a sociedade.

Se o pior acontecer, não se preocupem — repito que o cinema brasileiro não morrerá nunca. Estará sobrevivendo, como uma necessidade e como for possível, em experiências isoladas e aventuras inesperadas, como já aconteceu, entre um ciclo e outro. Talvez na produção universitária de tantas escolas espalhadas pelo Brasil. Ou na coragem e no empenho dos jovens cineastas de periferias urbanas. No esforço e na paixão dos que amam o cinema e não sabem viver sem ele. Mas seria muito melhor se, em vez de nas catacumbas da resistência, o cinema brasileiro se fizesse à luz do sol, para deleite e orgulho de toda a população.

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