Tatiana de Oliveira teve sua matrícula cancelada na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) menos de um mês após o início do curso de pedagogia, no qual ingressou por meio do sistema de cota racial. A instituição inscreve candidatos cotistas com base na autodeclaração de cor/raça negra, mas depois, com base numa entrevista, pode rejeitar a matrícula. O pai da estudante se define como “pardo” e o avô paterno, como “preto”, mas uma comissão da UFSM que funciona como tribunal racial pespegoulhe o rótulo de “branca”.
Juan Felipe Gomez, cotista ingressante na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), conheceu sorte similar. A instituição impugnou sua declaração racial recusando uma declaração cartorial na qual a mãe do jovem se identificou como “parda” e “afrodescendente”, uma certidão de nascimento que identifica a avó materna de Juan como “negra” e um prontuário civil em que a mãe é classificada como “parda”. Ele não está só: na UFSCAR, um quarto dos candidatos aprovados por meio do sistema de cotas raciais neste ano tiveram suas matrículas canceladas em virtude de impugnações do tribunal racial.
Segundo a lenda divulgada pelos arautos da doutrina racialista, a “raça negra” é constituída pela soma dos que se declaram censitariamente “pretos” com os que se declaram “pardos”. Em tese, o sistema de cotas raciais está destinado a esses dois grupos. Então, por que os tribunais raciais instalados nas universidades impugnam mestiços como Tatiana, Juan e tantos outros? A resposta encontra-se na introdução de um livro de Eneida dos Reis devotado a investigar o lugar social do mulato. O autor da introdução é o antropólogo Kabengele Munanga, professor titular na USP e um dos ícones do projeto de racialização oficial do Brasil.
Eis o que ele escreveu: “Os chamados mulatos têm seu patrimônio genético formado pela combinação dos cromossomos de ‘branco’ e de ‘negro’, o que faz deles seres naturalmente ambivalentes, ou seja, a simbiose (...) do ‘branco’ e do ‘negro’. (...) os mestiços são parcialmente negros, mas não o são totalmente por causa do sangue ou das gotas de sangue do branco que carregam. Os mestiços são também brancos, mas o são apenas parcialmente por causa do sangue do negro que carregam.”
O charlatanismo acadêmico está à solta. Cromossomos raciais? Sangue do branco? Sangue do negro? Seres naturalmente ambivalentes? Munanga quer dizer seres monstruosos? Do ponto mais alto da carreira universitária, o antropólogo professa a crença do “racismo científico”, velha de mais de um século, na existência biológica de raças humanas, vestindoa curiosamente numa linguagem decalcada da ciência genética. Mas ele vai adiante, saltando dos domínios da biologia para os da engenharia social: “Se no plano biológico, a ambiguidade dos mulatos é uma fatalidade da qual não podem escapar, no plano social e políticoideológico eles não podem permanecer (...) ‘branco’ e ‘negro’; não podem se colocar numa posição de indiferença ou de neutralidade quanto a conflitos latentes ou reais que existem entre os dois grupos, aos quais pertencem, biológica e/ou etnicamente.” É o horror — científico, acadêmico e moral. Mas, desgraçadamente, nessas frases abomináveis, que representam um cancelamento do conceito de cidadania, está delineada uma visão de mundo e exposto um plano de ação. De acordo com elas, a mola propulsora da História é o conflito racial e, no Brasil, para que a História avance, é preciso suprimir a mestiçagem, propiciando um embate direto entre as duas raças polares em conflito.
O imperativo da supressão da mestiçagem exige que os mestiços — esses monstros tristonhos condenados pela sua natureza à ambivalência — façam uma escolha política, decidindo se querem ser “brancos” ou “negros” no novo mundo organizado pelo mito da raça.
No veredicto do Grande Inquisidor que ocupa o cargo de reitor da UFSM, Tatiana foi declarada “branca” pois, em audiência diante de um tribunal racial, ela não testemunhou ser vítima de discriminação racial. A estudante, tanto quanto Juan Felipe e os demais rejeitados pelo Brasil afora, teve cassado o direito à autodeclaração de cor/raça por um punhado de inquisidores, que são professores racialistas e militantes de ONGs do movimento negro. Mas, antes disso, essa turma tomou de assalto as chaves de acesso ao ensino superior e, desafiando as normas constitucionais, cassou o direito de centenas de milhares de jovens da cor “errada” de ingressar na universidade pelo mérito demonstrado em exames objetivos. A massa dos sem direito é formada por estudantes de alta, média ou baixa renda, com diferentes tons de pele, que compartilham o azar de não funcionarem como símbolos úteis para uma ideologia.
Esquece-se com frequência que a pedra fundamental dos Estados baseados no princípio da raça é a proibição legal da miscigenação. A Lei Antimiscigenação da Virgínia, de 1924, que sintetizava o sentido geral da legislação segregacionista nos EUA, definiu como “negro” todos que tinham uma gota de “sangue negro”. A Lei para a Proteção do Sangue Germânico, de 1935, na Alemanha nazista, criminalizava casamentos e relações sexuais entre judeus e arianos. A Lei de Proibição de Casamentos Mistos, de 1949, na África do Sul do apartheid, proibiu uniões e relações sexuais entre brancos e não brancos. Raça é um empreendimento de higiene social: a busca da pureza.
Mestiçagem se faz na cama e na cultura. É troca entre corpos e intercâmbio de ideias. Os arautos brasileiros do mito da raça talvez gostassem de ter uma lei antimiscigenação, mas concentramse na missão mais realista de higienizar as mentes, expurgando de nossa consciência a imagem de uma nação misturada. Cada um dos jovens mestiços pré-universitários terá que optar entre as alternativas inapeláveis de ser “branco” ou ser “negro”. Para isso, e nada mais, servem as cotas raciais.
DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.
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